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Qualquer um pode ser pastor – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 21, 2023

Aqui há uns tempos uma pessoa arrasou um texto meu dizendo que “em tempos de crise estas pseudo-religiões sempre proliferam e qualquer um pode ser pastor.” Estão mesmo a ver as associações óbvias: “pseudo-religiões”, a minha; “qualquer um pode ser pastor”, eu. Já não bastava o meu texto ser mau aos olhos daquele leitor, eu próprio também era. A verdade é que ao longo dos anos tenho coleccionado algumas das piores críticas que me fazem como potenciais oráculos. Explico porquê: sobrevalorizamos a amizade como manifestação da verdade. Mas com frequência são as coisas ditas com pior vontade que mais verdade transmitem. Logo, tento não colocar de parte até as ofensas mais javardas que me atiram—nunca se sabe o bem que me podem fazer.

Na frase daquela pessoa que malhou no meu texto havia alguns ingredientes distintos. O primeiro era o dos “tempos de crise”. Talvez esse seja o menos ambicioso porque, para ser sincero, só acredito em tempos de crise. Achei interessante que aquela voz colocasse maldade em mim e no meu texto, ao mesmo tempo que afirmava poder haver um tempo sem ela—que tempos não são de crise, afinal? Mas já estou habituado à contradição das críticas negativas que me fazem partirem de pressupostos optimistas que não professo.
Um segundo ingrediente da crítica que recebi passava pelas “pseudo-religiões que proliferam”. Uma vez mais, a acusação que me era feita enfermava de um curioso dogmatismo positivo: eu representaria a pseudo-religião e, pressuponho, a voz que me criticava representaria, pelo menos, o conhecimento da religião que não era pseudo. Mais ainda: as religiões falsas que o discernimento daquele leitor detectava dão-se especialmente nas tais época de crise, “proliferando”. De facto, os pressupostos que me distinguem da crítica que me foi feita são imensos. A minha convicção é que a verdade de uma religião se vê precisamente à custa de qualquer época ser de crise. Curiosamente, a pessoa que me criticava associava religiões más a épocas más, sugerindo eventualmente que a religião boa se dará especialmente em épocas boas.
Apeteceu-me perguntar: se a época é boa, para que é que a religião é necessária? Se os tempos não são de crise, para que precisamos de nos voltar para Deus? Se os tempos já são bons, Deus connosco já está e a religião é, quando muito, uma redundância. Tenho de assumir que não somente não acredito em tempos que não são de crise, como não acredito em religiões para tempos bons ou para gente boa. Mas o meu ingrediente preferido na crítica que me foi dirigida deixo para o fim. O “qualquer um pode ser pastor”.

Tenho de reconhecer, usando uma linguagem bem simples: uma das coisas que mais odeio no nosso país é o seu precoce respeito pelo clero. Até quando os portugueses deixam de acreditar em Deus, continuam a respeitar o clero (e o clero de que falo, claro está, não se resume ao da Igreja Católica Romana). Uma das maiores tragédias da nossa história nacional é nunca se ter interrompido o namoro gelatinoso que tão facilmente empreendemos com os cleros que nos vão aparecendo à frente—somos um povo que suspira por batinas, estejam elas na sacristia ou no parlamento. Faltou-nos a Reforma Protestante, claro. Uma das óbvias vitórias do Protestantismo é nunca ter precisado de descer ao nível de defender a qualidade dos seus líderes. Os Protestantes rapidamente compreenderam a virtude de dar voz a quem se demonstrava incapaz de estar ao nível da respeitabilidade do clero. O respeito é uma santidade que não nos diz muito, de facto.

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