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Salve-se a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Set 23, 2024

A fuga dos cinco reclusos de Vale dos Judeus, a 7 de setembro, provocou ruído. Apenas ruído. De novo nada se acrescentou à indiferença como o tema é encarado pela comunidade em geral, em particular pela classe política. Para quem acompanha de perto a área, o ruído tem sido, mesmo, incomodativo. Afinal, parece que apenas subsiste o medo de que os reclusos fujam das cadeias.

Para evitar mais poluição, e repetições supérfluas, diria que, no cotejo final das análises interessantes, sobressaíram as comparações internacionais. As conclusões, de uma forma geral, apontam no sentido de considerarem a realidade penitenciária portuguesa próxima das médias europeias, ou até melhores, nomeadamente no que toca ao número de reclusos evadidos. Por exemplo, em 2023 evadiram-se nove reclusos, sete dos quais se encontravam intramuros. Ninguém se perturbou com isso.

Poderá dizer-se que, pelo menos, se falou do assunto. Diria que não. O que vimos, ouvimos e lemos foram, apenas, soundbites comuns.

Também é inverosímil afirmar que o tema está arredado dos meandros políticos. Basta recordar as várias audições realizadas em março do ano passado na subcomissão parlamentar para a Reinserção Social e Assuntos Prisionais. Foi durante essas audições que o agora demitido diretor-geral da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), Rui Abrunhosa Gonçalves, disparou mais ou menos isto: “Qualquer recluso que, do meu ponto de vista, não pense em fugir é porque já não estará bem da cabeça”. Ou seja, os cinco que escaparam de Vale dos Judeus revelaram uma boa saúde mental. O diretor-geral disse também que há reclusos que, por mais que se faça com eles, nunca vão deixar de ser criminosos.

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Vale a pena ver os vídeos disponíveis no canal parlamento. Durante as audições foram ouvidos sindicatos, associações, dirigentes, voluntários, enfim, toda a gente envolvida no sistema desde a época em que estava ainda divido em Direção Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) e em Direção-Geral da Reinserção Social (DGRS) – a fusão aconteceu em 2012, dando origem à atual DGRSP (Decreto-Lei nº 215/2012, de 28 de Setembro).

Foquei-me particularmente no depoimento da Associação dos Diretores e Adjuntos dos Estabelecimentos Prisionais por serem muito experientes e conhecerem a fundo a realidade. Luís Couto, o presidente e diretor do Estabelecimento Prisional da Guarda (EP), disse: “A falta de técnicos é tão gritante que por vezes até a desratização do EP é feita pelo diretor porque não há mais ninguém para o fazer”. Advertiu também que as atuais dificuldades estão ao ponto de “poder perigar o normal funcionamento dos EP”, sublinhando: “A maior parte não têm os seus postos mínimos de segurança assegurados”.

Ou seja, o diagnóstico sobre o sistema prisional e de reinserção foi elaborado, revelado e denunciado, no Parlamento, em março de 2023. Estiveram lá também os sindicatos dos guardas prisionais e dos técnicos de reinserção social. Todos falaram e deixaram ali o retrato real da DGRSP. Apetece perguntar: o que fizeram depois os deputados?

Contudo, foi ali dito algo que me prendeu especialmente a atenção. O diretor do EP de Coimbra, Orlando Carvalho, assegurou aos deputados que no EP que dirige a reincidência ronda os 65%. Ou seja, a grande maioria dos reclusos são “clientes” habituais, que entram e saem do sistema. No período em que fui subdiretor-geral da DGRSP (2012-2016), com delegação de competências para a área da reinserção, a estimativa da reincidência em Portugal situava-se também naquele valor, não existindo ainda, lamentavelmente, um estudo académico esclarecedor.

Aqui chegado, o importante agora é focarmo-nos no problema de fundo do sistema da reabilitação e da reinserção social de pessoas condenadas a penas privativas de liberdade.

Em primeiro lugar, carece de fundamento o dito pelo agora demitido diretor-geral sobre a saúde mental dos que nem sequer ponderam fugir da cadeia. Fui dirigente durante bastante mais tempo do que Abrunhosa Gonçalves e a perceção que tenho é que 90% dos reclusos só pensam em sair em liberdade sem preocupações de que o sistema os continue a perseguir, ou seja, desejam “uma saída limpa”. Carece também de fundamento a ideia de que há reclusos que, por mais que se faça com eles, nunca vão deixar de ser criminosos.

Quando visitava os EP falava sempre com alguns reclusos, repetindo-lhes a mesma frase, que não é minha: “Todas as pessoas são muito maiores do que os seus próprios erros”.

Crentes neste axioma, fomos dizendo aos dirigentes e técnicos que as prisões servem para libertar e não para prender. O primeiro dia de reclusão deve ser o início de uma caminhada rumo ao regresso à vida normal, na comunidade, na família, no emprego.

Como é que isto se faz?

É muito simples:

  1. Todos os arguidos e condenados devem estar integrados em Programas específicos de reabilitação – psico-educativos — dirigidos a necessidades criminógenas. Todos, em todos os EP. O indivíduo tem de ser ajudado a mudar de mente… é inconcebível que um condenado por violência doméstica, por exemplo, passe por um EP sem se sujeitar a um programa psico-educativo.
  2. Todos os EP devem apresentar serviços escolares bem organizados e com condições físicas para a docência. Por vezes os reclusos não vão às aulas porque não há guardas prisionais para os acompanharem desde as celas até às salas. Isto é inadmissível, mas acontece. Recorde-se que o protocolo com o Ministério da Educação já existe e com condições para funcionar bem.
  3. Os reclusos que recusassem as aulas teriam de ter oportunidade de exercerem uma atividade laboral, com compensações financeiras adequadas à realidade. Repito: em todos os EP teria de haver oportunidade de trabalho.
  4. Serviços de saúde bem organizados, sobretudo na área da saúde mental.
  5.  Muito importante: proibição do ócio. Todos têm de ter uma atividade. Quem optar por passar o dia todo na cela, sem fazer nada, ficaria obrigado a pagar uma diária pela estadia no EP. Por agora, apenas este requisito obrigaria a alterações nos códigos penais, nomeadamente no Código de Execução de Penas.
  6. Preparação e acompanhamento, muito bem definidos, da liberdade condicional. Este ponto é fundamental e tem sido descurado.

A aplicação destes requisitos implica alguns compromissos:

  1. Que o número de guardas prisionais e o número de Técnicos Superiores de Reeducação (TSR) sejam mais equilibrados. Neste momento, nos 49 EP, com cerca de 12 mil reclusos, existem quase quatro mil guardas, o que dá um rácio de cerca de três reclusos para cada guarda. Os TSR – responsáveis pela aplicação dos programas psico-educativos, pela organização da escola, do trabalho, da saúde, ou seja, de toda a dinâmica de reabilitação e de reinserção social, são cerca de 600, o que, em média, cada TSR acompanha cerca de 200 reclusos. Isto significa que os EP estão mais vocacionados para vigiar reclusos do que para os reabilitar rumo à reinserção.
  2. Habilitar mais os guardas prisionais para a componente da reinserção. Por exemplo, deveriam, em meu entender, serem responsabilizados pelo acompanhamento da liberdade condicional, vestindo à paisana, obviamente, quando visitassem as comunidades de residência dos reclusos.  Até deveriam mudar a nomenclatura profissional. O papel deles, fundamental, não é serem guardas, mas formadores.
  3. Este terceiro ponto é tecnicamente mais complicado, mas viável. Os relatórios sociais pedidos pelo juiz, quando um arguido apresenta fortes probabilidades de condenação a pena privativa de liberdade, deveriam ser elaborados pelos técnicos pertencentes ao EP que vai receber o condenado. Qual a vantagem? Assim, a equipa de TSR já conhecia a pessoa e, quando esta chegasse, já teria preparado um Plano Individual de Readaptação (PIR). Essa mesma equipa, juntamente com os guardas prisionais, é que irá acompanhar todo o processo de reabilitação até à liberdade condicional. É o que chamamos de “Equipa Única” que acompanha a pessoa desde que entra até que sai do sistema. Esta dinâmica já foi experimentada e resultou. Lamenta-se que tenha sido depois abandonada e se tenha retrocedido para o caos no acompanhamento penitenciário. Daí, a reincidência permanecer ainda tão alta.
  4. Este ponto também requer algum esforço, mas é igualmente viável: especializar os EP por áreas laborais e de formação.  Assim, a pessoa seria orientada para um EP com respostas de formação e de trabalho mais conformes ao perfil que apresente. Ou seja, os EP seriam escolas de formação, cada qual com a sua especialidade, e só receberiam os reclusos com o perfil adequado. Deveria haver também a especialização para os que se encontram em prisão preventiva. A mistura de preventivos com condenados é nefasta.
  5. A DGRSP tem de manter um diálogo permanente com as Universidades, as empresas, as instituições de solidariedade social e os organismos de saúde, privados ou públicos. A DGRSP reabilita, mas são as instituições do exterior que vão assegurar a reinserção social da pessoa que esteve encarcerada. Sem esta proximidade colaborativa, é impossível se reinserir. O EP de Torres Novas é um bom exemplo.

Não me posso alongar mais. Dizer apenas que é urgente repensar as carreiras dos técnicos superiores, quer a dos que estão nos EP – os TSR – quer a dos que acompanham os condenados a penas não privativas de liberdade e os que se encontram nos Centros Educativos — os Técnicos Superiores de Reinserção Social (TSRS). Manter a especialidade das carreiras, mas “fundi-las” numa carreira única. Sem esquecer os Técnicos Profissionais de Reinserção Social (TPRS) que garantem a vigilância eletrónica e que estão muito esquecidos.

A ministra da Justiça, Rita de Alarcão Júdice, anunciou duas auditorias, no seguimento da fuga dos cinco reclusos de Vale dos Judeus: uma ao sistema de vigilância dos EP e outra à gestão da DGRSP. Eu aconselho a que esta segunda se foque, sobretudo, na fusão da antiga DGSP com a DGRS, porque, tenho a certeza, esta ainda não foi mentalmente concretizada.  Dentro da DGRSP ainda existem duas direções gerais. A cultura da casa continua sem interiorizar a nova orgânica da instituição surgida em 2012 e isso está a obstaculizar o trabalho de reabilitação e de reinserção a que a DGRSP, por lei, está obrigada, mas que, infelizmente, não cumpre.

Não abordei a questão do acompanhamento dos condenados a penas não privativas de liberdade, da responsabilidade dos TSRS. Fica para outro momento, mas é um assunto igualmente muito sério e ainda muito desprezado.

Tudo isto para dizer que o ruído provocado pelas evasões de Vale dos Judeus apenas abafou as questões de fundo.





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