• Seg. Set 30th, 2024

O que é isso de “bodies of culture”? – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Set 30, 2024

Devo também a Nellie Bowles e ao seu Morning After the Revolution o conhecimento da expressão “bodies of culture” [corpos de cultura] para referir pessoas não brancas. Este termo, que se tem tornado muito popular no domínio identitário, foi criado por Resmaa Menakem, terapeuta especialista em trauma e “abolicionista somático”. Certo, uma coisa de cada vez.

Com o termo “bodies of culture”, Menakem tem um duplo objetivo: em primeiro lugar, usar a palavra “corpo” em vez de “pessoa” por forma a realçar a dimensão física da nossa existência (somos corpos, emoções, seres que se relacionam fisicamente uns com os outros); em segundo lugar, usar o termo “of culture” em vez de “people of color” ou BIPOC (Black, Indigenous and People Of Color) para realçar que só estes corpos são corpos de cultura: têm a sua história, conhecem as suas tradições, pertencem a uma comunidade.

Em bom rigor, os corpos brancos também têm cultura: mas trata-se de uma cultura de supremacia branca que os brancos não reconhecem porque não se veem como brancos. E como não reconhecem esse modo específico de ver o mundo, e tomam a sua cultura como universal, tornam todos os outros corpos “o outro”, “aquele que não encaixa”.

Estamos em pleno domínio identitário: a nossa identidade racial determina o modo como vemos e pensamos o mundo e, na medida em que os brancos se recusam a reconhecer que o seu modo de ver e pensar o mundo decorre da sua identidade branca, não conhecem a sua cultura e o seu modo de viver. Já os “corpos de cultura conhecem a sua história; os corpos negros sabem”.

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Ainda assim, e pelo facto de a sociedade atual resultar de uma estrutura de supremacia branca, os corpos de cultura estão, nas palavras de Menakem, infetados com o vírus da supremacia branca – um vírus criado na Assembleia Geral da Virgínia de 1691, e que se espalhou pelo continente, infetando pessoas de todas as cores e vivendo nos seus corpos ainda hoje. É aqui que entra o abolicionista somático: ele pode ajudar no processo de libertar o corpo da supremacia branca (abolindo o vírus), fazendo-o regressar a uma sabedoria e cultura ancestrais através de uma prática antirracista.

É particularmente importante que também os corpos brancos se submetam a esta terapia: só quando todos nos libertarmos de uma cultura de supremacia branca teremos um mundo mais humano. Mas não se trata de uma libertação fácil. Como os corpos brancos estão socializados no conforto da supremacia branca, pôr em causa esse estado gera desconforto – como Robin DiAngelo já havia dito em Fragilidade Branca: se nos sentimos confortáveis é porque ainda estamos protegidos pela supremacia branca – só quando sentimos desconforto (físico e mental) é que estamos a abdicar do modo de pensar supremacista branco.

E o maior desconforto talvez resulte desta conclusão: a identidade branca só existe enquanto forma de supremacia branca; quando abdicamos desse privilégio, não sobra nada: resta apenas um corpo branco.

Para compreendermos o que é uma cultura de supremacia branca, temos de introduzir uma nova personagem: Tema Okun, facilitadora e consultora ativista muito popular nos Estados Unidos por ter redigido, em 1999, um conjunto de notas que identificava as características da cultura de supremacia branca. O texto tornou-se um documento-chave para todas as atividades e manuais que se dedicam à missão de desmantelar o racismo, mas foi com os protestos que se seguiram à morte de George Floyd que a lista de Okun se tornou omnipresente, desde o Smithsonian Institution, e o seu National Museum of African American History and Culture, a formações de diretores de escolas públicas. Como Nellie Bowles ironiza,

“A lista de Okun tornou-se rapidamente num dos documentos mais importantes dos Estados Unidos – outra espécie de constituição para um determinado conjunto de líderes cívicos.”

Em resultado dessa popularidade e, na verdade, de uma contínua polémica em torno da lista, Okun decidiu reformulá-la e expandi-la para que “as suas ideias pudessem ser corretamente compreendidas”. Usarei, daqui em diante, essa nova versão, de 2021.

Como facilitadora e consultora racial no mundo empresarial, o trabalho de Okun passa por mostrar de que modo as organizações e as empresas se encontram moldadas por princípios e valores que resultam de uma cultura de supremacia branca. É esse ambiente cultural que torna as empresas pouco inclusivas e incapazes de integrar formas alternativas de pensamento.

A lista compreende mais de uma dezena de características, como “medo”, “individualismo”, “sentido de urgência”, “culto da palavra escrita”, “direito ao conforto”, “perfecionismo”, “objetividade” ou “paternalismo”. Deixemos para outros textos o tema do “individualismo” e o modo como “perfecionismo” e “objetividade” se relacionam com a matemática. Por agora, concentremo-nos em duas daquelas características:

  • “sentido de urgência, apresentado como “dar prioridade a resultados de curto prazo sem considerar as implicações a longo prazo”, e
  • “direito ao conforto”, como “a exigência de conforto emocional e psicológico por parte daqueles que estão em posição de poder, ao mesmo tempo que o negam a quem não está em posição de poder”.

Não é difícil de nos relacionarmos com o que estas características podem ter de controverso. De facto, já aqui nos queixamos do modo acelerado dos nossos dias, que exigem respostas imediatas e impedem um pensamento lento, fruto da pressão tecnológica e da dinâmica de progresso que nos impele constantemente à ação. Aliás, frases que começam com “é urgente”, quando se está a falar sobre temas políticos ou sociais, devem colocar-nos, de imediato, em posição de alerta: é muito provável que esse tipo de formulação seja acompanhado por uma total desconsideração quanto à complexidade da vida, da realidade e da política. É, por isso, fácil sentir simpatia pela ideia de que o sentido de urgência pode ser problemático.

E o mesmo vale para o direito ao conforto, um conceito estranho para a filosofia: afinal, não é a essência da filosofia provocar desconforto por nos obrigar a parar, repensar, ser rigorosos com as palavras e vermos as coisas com novos olhos? Haverá maior prazer (intelectual, pelo menos) do que participar numa discussão (em aula, por exemplo) que nos confronta com diferentes argumentos e pontos de vista? E não é em situações de desconforto que pomos à prova as nossas qualidades e as nossas virtudes? Nessa medida, uma cultura que privilegia o direito ao conforto e a não ser perturbado ou ofendido pode ser, no mínimo, desinteressante.

Mas estas características assumem, na lista de Okun, um sentido totalmente racial:

  • o sentido de urgência é problemático porque “torna difícil reservar tempo para ser inclusivo” e frequentemente tem como resultado “sacrificar os interesses das comunidades de cor para obter vitórias para as pessoas brancas”; mas também “privilegia as pessoas que processam a informação rapidamente” e “sacrifica e apaga o potencial de outros modos de conhecimento e sabedoria que requerem mais tempo”.
  • e no caso do direito ao conforto, o problema está em “fazer de bode expiatório aqueles que causam desconforto, por exemplo, visando e isolando aqueles que denunciam o racismo em vez de abordar o racismo real que está a ser denunciado” e “sentir-se no direito de definir o que é e o que não é racismo”.

Quando criticamos este tipo de argumentação, devemos proceder com cautela: afinal, como Nellie Bowles nota, é muito provável que “a resistência à lista deva ser acrescentada à própria lista”. Mas há, desde logo, um problema na abordagem de Okun: é que ela não explica por que razão estas caraterísticas são reflexo de “branquitude” (pelo que só existiriam em sociedades “brancas”). Pelo contrário, adota um raciocínio circular: a sociedade norte-americana é marcada por supremacia branca porque apresenta características de supremacia branca que são aquelas que estão presentes na sociedade norte-americana de supremacia branca. Como acontece quase sempre no domínio identitário, o pressuposto de partida já está decidido: a sociedade norte-americana é uma sociedade de supremacia branca e tudo o mais é resultado desse postulado.

Okun poderia ter afirmado que são características da sociedade norte-americana, das sociedades ocidentais ou das sociedades capitalistas. Ou que resultam do desenvolvimento tecnológico ou da civilização moderna. Ou que são até traços do ser humano, cuja ambição parece sempre desmedida. Mas como as lentes raciais levam estas pessoas a interpretar tudo a partir da raça, Okun faz decorrer esses aspetos da “branquitude” e parece associar, com isso, a identidade negra a um certo primitivismo. Esta é, aliás, uma crítica frequentemente colocada a este tipo de argumentos: não se está com esta abordagem a menorizar os não-brancos, atribuindo-lhes um lado quase primitivo e selvagem, como se fez noutros tempos? E não constitui esta abordagem uma forma de paternalismo? (tanto Okun como DiAngelo são mulheres brancas)

Mas é possível que o maior perigo desta abordagem resulte do seu enquadramento filosófico: na medida em que estas teorias identitárias se baseiam em ideias nietzschianas e foucaultianas de poder e marxistas e leninistas de opressão, o objetivo destes ativistas é o de inverter aquilo que eles percecionam como as relações de poder e opressão. Para esse efeito, parecem ter recuperado o projeto civilizador que, durante o século XIX, muitos europeus afirmaram querer levar aos africanos e demais povos inferiores – agora em sentido inverso: o objetivo é civilizar os brancos no sentido de abandonarem os seus maus hábitos e ideias e adotarem as características da cultura superior negra.

Este exercício de poder não constitui surpresa: na lógica identitária, não há diálogo, compromisso e convivência – mas sempre só desentendimento, conflito e luta pelo poder, nomeadamente cultural. E também não é, por isso, surpreendente que, nos Estados Unidos, se fale cada vez mais na possibilidade de guerra civil.





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