• Dom. Out 6th, 2024

Estes livros querem ensinar-nos a ler. Mas o que podemos aprender que não sabemos já? – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 6, 2024


Os livros que nos ensinam a ler nascem de uma ideia arrojada. Num tempo em que reina uma autoconfiança mimada, em que uma arrogância estúpida se apresenta como um ato de coragem, os livros que nos ensinam a ler vêm ao arrepio. Dizem-nos que há modos certos de ler, que certas coisas não se apreendem imediatamente, que os nossos instrumentos naturais não chegam para falarmos uma linguagem que usa as mesmas palavras que nós, mas tem outros significados, muitas vezes mais subtis.

A ideia de que é preciso ensinar a ler um poema, de que a experiência de alguém como leitor interessa, de que há na escrita uma gramática própria é então, por si só, uma tese: a de que a literatura tem uma linguagem própria, que não encontramos no quotidiano.

O livro recente de Miguel Esteves Cardoso sobre como escrever (o título é, precisamente Como Escrever, publicado pela Bertrand) desconcerta precisamente por se esquivar desta noção. A ideia é simples: trata-se de um livro para quem quer escrever, não para quem quer escrever bem. Se o objetivo é escrever, então o que se procura são truques para nos esquivarmos da preguiça, das angústias e das ansiedades, do temor pela imperfeição, mas não uma teoria literária ou uma ideia sobre gramática da criação. Trata-se, obviamente, de uma batota; tem um certo encanto preguiçoso e desleixado, que talvez só a Miguel Esteves Cardoso se perdoasse, mas é essencialmente isso: uma forma, com graça, é certo, de se esquivar ao problema principal da escrita e da leitura, o de perceber o seu modo específico de ser.

“Como Escrever” (Bertrand) tem um certo encanto preguiçoso e desleixado, que talvez só a Miguel Esteves Cardoso se perdoasse

Quando Terry Eagleton, no seu livro sobre como ler um poema, passa grande parte do texto a explicar os fundamentos da teoria literária, fá-lo por causa disso mesmo. Não seria preciso explicar como ler um poema se a poesia não estivesse numa categoria diferente daquela em que está o quotidiano. Poderíamos ter um problema igualmente misterioso – como viver, como olhar para a realidade? – mas a pergunta do título admite uma diferença de substância. Um poema lê-se de uma maneira diferente, não se capta o seu sentido num relance, há modos de construção próprios para o que queremos provocar, de tal modo que, por muito que não mudemos de instrumentos – continuamos a usar os olhos, a memória, o raciocínio – mudamos a maneira de os usar.

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Curiosamente, contudo, o que o livro de Terry Eagleton nos traz é um problema ainda maior a respeito disso mesmo.

Ao admitir que não lemos o quotidiano e a arte da mesma maneira, temos de admitir que há um modo, ou vários, de ler a arte. No limite, podemos dizer que são válidos todos os métodos menos um, o de leitura do quotidiano; no entanto, o que Terry Eagleton mostra é precisamente a dificuldade que temos em encontrar esse método. Eagleton quer mostrar que a ideia de teoria literária não acaba com o texto, coisa de que, durante tantos anos, a acusaram os seus detratores. Ao procurar um discurso geral sobre a literatura, a teoria acabaria por eliminar a crítica, ao reduzir aquilo que há a dizer sobre um texto ao mesmo que há a dizer sobre qualquer outro. Isto é, se eu procuro formular uma teoria da literatura, encontrar uma ideia motriz que se possa aplicar a todas as literaturas, todas elas me darão o mesmo, de tal modo que a teoria esgota o discurso crítico.





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