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A angústia de nascer, viver, morrer em ditadura – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 19, 2024

Nasci em Lourenço Marques, Moçambique. No final da infância, descobri que vivia numa ditadura autoritária colonial para, naqueles dias, ver os «libertadores» da Frelimo fazerem nascer uma nova ditadura, a socialista, tão-só empobrecedora, caótica e muitíssimo mais violenta. Matava em massa de forma direta (fuzilamentos ou operações de «limpeza») e indireta (campos de reeducação, fome, guerra civil sem freio).

Entretanto, escapei a tal inferno na adolescência. Imigrante em Portugal e considerando a miséria em que se transformou a terra originária, nos momentos iniciais respirei o ar livre do que tinha a forma de uma democracia digna do nome. Aos poucos, o tempo foi desfazendo ilusões. Os donos dos regimes trilhavam rotas paralelas em Moçambique e Portugal com diferenças de grau fruto de tradições civilizacionais milenares bastante distintas, a africana e a europeia.

No poder entre 1928 e 1968, não há registos de Salazar mandar exibir pelas ruas de Lisboa cabeças cortadas dos inimigos, nem de ordenar a realização de autos-de-fé que queimassem inimigos em praça pública ou de instigar fuzilamentos em série, práticas perdidas na memória coletiva portuguesa ou humanamente inconcebíveis à época. Não é por se ter mantido imaculado em relação a tal selvajaria que alguma vez o Estado Novo (1933-1974) deixará de ser um regime político altamente repressivo, porém com recurso a métodos muitíssimo mais sofisticados face a qualquer passado. Tal como o bem, o mal também se reajusta a épocas e contextos civilizacionais concretos.

Nestas primeiras décadas do século XXI, o regime atual segue a evolução natural do recurso a métodos repressivos comparativamente à ditadura de Salazar, tal como esta procedeu de modo semelhante face a sistemas repressivos historicamente anteriores. Os portugueses vivem hoje vergados a um poder especializado em técnicas de guerra psicológica de tradição soviética que garantem a legitimidade exclusiva do pensamento de esquerda. Na tipificação de um regime repressivo, não existem diferenças de substância entre o princípio d’«o inimigo é para abater» (passado) e d’«o inimigo é para silenciar» (presente).

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O último meio século português resume-se à tomada de assalto, pelo policiamento que garante a sociedade do pensamento único, de todas as instituições que determinam o modo como as sociedades massivamente escolarizadas são autorizadas a pensar e dizer: universidades, escolas, comunicação social, meios intelectuais e artísticos. A ditadura mental de esquerda atingiu o nirvana.

Todavia, como qualquer variante de regime repressivo, a violação da condição humana gera consequências patológicas nas pessoas e instituições, o gato escondido com o rabo de fora. Daí a sociedade portuguesa afundar-se, na atualidade, numa crise de saúde mental sem precedentes filiada à mais ameaçadora de sempre dissolução de instituições nucleares: família, escola, justiça, saúde, segurança, economia, fronteiras, entre outras.

Desde os primeiros passos da civilização, não haveria transformações que defendessem a dignidade da condição humana sem livros, crença que me levou, neste ano de 2024, a combater por essa via a ditadura que nos oprime.

Cada um de nós terá as suas experiências de vida de tempos repressivos, muitas vezes impossíveis de traduzir por palavras, ainda que as impressões da alma não deixem réstias de dúvidas. É o que tentarei retratar, mas para isso importa recuar a 2022, ano em que me tornei deputado. Naquela que foi a minha primeira legislatura que, em princípio, duraria até 2026, logo nas primeiras semanas compreendi a importância de racionalizar o que estava a viver na Assembleia da República. Construir progressivamente um testemunho escrito ao vivo que resultasse num livro seria a melhor resposta.

Contrariamente ao que vinha fazendo desde 1997, a partir de 2022 a graça do destino ofereceu-me um palco para mim inédito. Antes a matéria-prima que utilizava fazia-me ver a relação entre «o povo e o poder» de baixo para cima, a partir de bem mais de uma década de recolha e análise de discursos de senso comum, em particular dos mais pobres entre os pobres, dos meus conterrâneos moçambicanos negros. A partir da condição de deputado, passei a dispor de matéria-prima para olhar para o mesmo fenómeno em sentido inverso, de cima para baixo, na perspetiva da relação entre «o poder e o povo» (expressão de Vasco Pulido Valente).

Depressa se revelou ainda mais evidente a natureza repressiva castradora da liberdade de pensamento e discurso, uma vez que os seus agentes atuam a céu aberto, sem o mínimo pudor ou dever de busca da verdade, face a certos membros que são parte integrante de um órgão de soberania de uma democracia, deputados da Assembleia da República no exercício formal do seu mandato legitimado pelo voto. Não creio existirem registos históricos de tamanha proeza repressiva por parte dos inconfessados inimigos viscerais da razão e da democracia. Eles andam todos por aí.

Praticamente desde o início do meu mandato, salvo uma ou outra exceção, as minhas intervenções no Plenário e nas Comissões Parlamentares da Assembleia da República assumiram a forma de textos publicáveis, textos que acertava logo na hora quando havia improvisos. Preparei-os para que constituíssem uma sequência lógica de pensamento e discurso de combate à ditadura mais sofisticada de sempre no coração do seu poder. O livro ia sendo construído ao vivo em cada semana.

Como complemento, criei uma página on-line de deputado onde publicava reflexões mais aprofundadas sobre os mesmos assuntos ou questões associadas, textos sujeitos a reações imediatas dos leitores. Foi nessa página que, inspirado por Jordan Peterson, no verão de 2023 sistematizei as 12 regras que orientavam aquela que era a minha missão.

O dever que impus a mim mesmo tornou-se a cada semana mais premente à medida que constatava o aprofundamento continuado de uma discrepância, entretanto tornada radical, entre aquilo que era o meu trabalho parlamentar, e do meu partido, e a imagem pública que a comunicação social ia construindo sobre esse mesmo trabalho. O fosso era e é tal que alguém tinha de estar a mentir, em rigor alguém estava a manipular de forma grosseira a realidade. Sabia e sei que um livro como aquele que ia construindo acabaria por ser uma arma dificilmente derrotável nesse braço-de-ferro.

Prosseguia a missão quando, no final de 2023 e bem antes do previsto para 2026, o governo socialista de maioria absoluta de António Costa chegou ao fim. Foi fácil aprontar a versão publicável do livro em poucas semanas (o «manuscrito») e julgava que o resto seria facílimo. Ingenuidade de palmatória. Tinha-me escapado um pequeno-grande detalhe da ditadura mental de esquerda: infiltrar-se em todos os poros que possam permitir ao pensamento e discurso desalinhados chegarem à opinião pública. O mundo dos livros, editoras e tudo resto, é um dos territórios do poder repressivo por excelência. Aprender até morrer.

Depois de silêncios ou raras respostas negativas e muitas tentativas, desencantei uma pequena editora que me propôs uma solução para ela excecional. Incluía uma recomendação, a de retirar do título e capa palavras como «Ventura» e «Chega» porque, naquele caso, arriscava rejeições apriorísticas extensíveis a questões básicas como o trabalho de impressão de uma gráfica recomendável ou a simples arrumação do livro nas prateleiras das livrarias e demais má vontade funcional num meio, pelos vistos, correspondente a uma máquina fechada sobre si mesma. Fora desse circuito, livros com potencial intelectual ou social (bastante) significativos até podem existir, porém morrerão na praia, como se diz.

A solução excecional incluía outro detalhe: não revelar o nome do editor e da editora que me ajudavam, pelo que o livro passaria a edição de autor (minha). Passadas algumas semanas descobri como isso complicava a aceitação do mesmo pelas distribuidoras, as que fazem chegar os livros às livrarias, isto é, aos leitores. Aceitei o risco por duas razões: o valor que tenho consciência que o livro possui por ser um produto direto e ao vivo da história social e política que estamos a viver; e porque quem se disponibilizou a fazer o trabalho de edição não poderia arriscar a ruína da sua pequena editora, o seu ganha-pão, contra um mercado livreiro e intelectual para o qual trabalha que não lhe perdoaria a ousadia da publicação do livro e do autor em causa. Se tal universo não é uma besta repressiva, não sei o que seja.

Publicado o livro, apesar de ser deputado (ou precisamente por isso!) e dos meus esforços, até hoje a comunicação social ignora o livro, a mesma que vive da orgia histérica da política e espiolha todas as vírgulas que as pessoas do meu partido publicam para as humilhar a qualquer miserável pretexto. É também a mesma comunicação social que quase todos os dias me vê no Parlamento, agora em todas as sessões plenárias na Mesa da Assembleia da República.

Não há mistério. Quando um regime decreta a não existência de um livro e do seu autor em tais circunstâncias é a prova do pavor que os ditadores vivem do confronto com a sua própria alma castradora de terceiros e do pavor que sentem da perda do controlo repressivo das cabeças de uma sociedade inteira. Façam o que fizerem, essa fatalidade do destino acabará por se impor cedo ou tarde.

Como referi, por causa da edição de autor provei a rejeição inicial das distribuidoras. Entre fevereiro e abril deste ano restou-me colocar o livro em pequenas livrarias (Leiria, Lisboa, Oeiras e Almada) e ir respondendo a pedidos diretos de acesso ao exemplar. Como insistia em divulgar o livro na minha página de deputado, logo nesses meses iniciais circularam centenas de exemplares, o que me ia deixando otimista no dever de persistir. Isso também porque os comentários que recebi de leitores que de facto leram a obra ofereciam-me a prova provada de não serem os leitores que a rejeitavam, tão-só a máquina repressora. Ditadura é mesmo assim.

Depois de muita teimosia, quis o destino que uma alma caridosa de uma grande distribuidora, explicadas as circunstâncias, aceitasse ler o exemplar de autor. Em poucas semanas, o livro chegou às grandes livrarias em condições mínimas para uma obra cuja existência social continua a não estar autorizada pelo regime. Uma segunda edição, a cada semana mais provável, será dobrar o Cabo das Tormentas.

Como qualquer outro, admito que o livro mereça uma justíssima rejeição. Porém, para haver honestidade mínima em tal rejeição importa reconhecer o direito de existência social daquilo que se rejeita e, no caso concreto, não será menos importante que alguém versado no tema comprove a falta de qualidade, falta de interesse público ou eventuais ameaças que o livro representa, a quem e como. Está em causa a defesa de referentes morais, intelectuais e cívicos com as quais cerca de um milhão e duzentos mil eleitores potencialmente se podem identificar, portugueses destratados de forma inqualificável pela atual censura prévia, muitíssimo mais sofisticada e poderosa do que alguma vez foi a do tempo de Salazar.

As pessoas morrem, mas também não existem ditaduras que eternamente resistam a livros que as combatem. Os livros, esses, nunca morrerão, uma das graças do destino.



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