Este livro é composto por um conjunto de cartas a um Papa imaginário. Descreve a figura do Papa como “a mais alta autoridade educativa da Igreja Católica”, que “não é um inquisidor que anda atrás de falhas nas minhas afirmações”. Depois, quando retrata o imaginário Papa Rafael como “o Papa de todos os que procuram”, e que conheceu em sonhos, caracteriza-o como um “pai, como indica o título de Papa, um pai espiritual, mas um pai de filhos adultos, que respeita plenamente a sua maturidade, autonomia e liberdade”. Escreve isto porque lhe parece que existe uma tentação na Igreja Católica — ou em alguns na Igreja — para infantilizar os fiéis? Para os tratar, não como adultos, mas como crianças?
O Papa Francisco lança-nos um apelo para que sonhemos. Por isso, como padre obediente, faço-o. Uma noite, nos meus sonhos, apareceu-me um outro Papa. Gosto muito do Papa Francisco, mas percebo que ele não tenha tempo suficiente para ouvir todas as minhas perguntas. Por isso, uso este Papa dos meus sonhos. Uso-o como Carl Gustav Jung, que tem esta ideia de trabalhar com as figuras dos nossos sonhos, da nossa imaginação, como figuras reais. Penso que este Papa imaginário tem muito tempo para me ouvir. E, sim, é um pai de filhos adultos. Por vezes, esta palavra “pai” — Jesus diz “não chamem ‘pai’ a ninguém” e nós fazemo-lo [cf. Mt 23:9] — é para alguns uma sugestão de infalibilidade. Penso que precisamos de pais de filhos adultos — e nós precisamos de ser cristãos adultos.
Mas, quando olha para a Igreja Católica contemporânea, vê essa tentação de tratar os fiéis como crianças?
Sim, claro. Muitas pessoas aprenderam a vida da fé na infância e, para muitas, parou na primeira comunhão ou no crisma. O Papa diz que, para muita gente nestas famílias tradicionais, o crisma é como se fosse o sacramento da extrema-unção, o último sacramento. Para muitas pessoas, pára aí. E, depois, normalmente, vem alguma crise, porque não podemos continuar a viver com a nossa imaginação da infância. Nessa crise, por volta dos 15 anos, muitos abandonam a Igreja, porque não encontram respostas para as suas novas perguntas, para os seus novos problemas. Muitas pessoas sentem que a Igreja os tenta empurrar de novo para a infância, mas isso não é possível.
A Igreja fica presa numa linguagem que infantiliza as pessoas?
Sim. É um problema que muitas pessoas têm. Penso que é normal que exista alguma crise, porque também nas relações com os pais há, por vezes, alguma crise nesta idade da adolescência. E, depois, têm de definir relações adultas com os pais.
E isso também é necessário na Igreja?
Com a fé, com a Igreja e com Deus. Não se pode ter estas projeções infantis, porque algumas destas projeções são também distrações — como se a Igreja fosse um polícia, que nos está sempre a punir. Usa-se Deus como uma espécie de punição, como um policiamento moral.
No livro, explora a ideia da liberdade para a interpretação do espírito. Escreve que “o Espírito não pode ser travado por uma fixação angustiada e pouco criativa no que foi outrora escrito”. Diz que “a revelação de Deus tem o caráter de um mistério inesgotável: por isso, há que se deixar sempre espaço para outras procuras e compreensões mais profundas”.
O Papa tem dito o mesmo: diz que não podemos parar quando encontramos alguma coisa; temos de procurar novamente, para irmos mais fundo. Uma grande inspiração para mim é um dos meus colegas, o filósofo irlandês e americano Richard Kearney, que fala do “anateísmo”: acreditar de novo. Algumas pessoas — e sei-o também pela minha prática pastoral — regressam dizendo “acredito, agora, no mesmo em que acreditava quando era criança, mas acredito de outra forma”. O sujeito é o mesmo, mas acredita de uma forma diferente. O filósofo Paul Ricœur falava de uma “segunda ingenuidade”. É algo na história da cultura, mas também na história individual. Os povos ancestrais tinham uma certa “primeira ingenuidade”, um certo acesso natural ao divino. Mas este acesso natural à esfera divina perdeu-se no Iluminismo e na Era Moderna. Não podemos voltar atrás, até à era pré-moderna, à antiguidade: temos de encontrar uma nova forma de entender estas coisas. Pela interpretação. Perdemos estas evidências, mas temos de encontrar um caminho pela interpretação.
Ainda neste contexto, a certa altura cita a célebre expressão de São Paulo “a letra mata, mas o espírito vivifica” e acrescenta: “Tal como não nos podemos fixar na letra, também não nos podemos fixar nos professores, não nos podemos livrar de toda e qualquer responsabilidade apenas no ‘magistério dos professores’.” Escreve ainda que a Igreja “esteve por séculos sujeita sobretudo a essa tentação” de interpretar a palavra “creio” como “creio obedientemente em tudo o que a Igreja me apresenta para crer”. O que é que está a propor aqui? Diz que a Igreja tem de abdicar do “monopólio exclusivo da plena compreensão do espírito”: todos os fiéis, todos os cristãos, têm de ser mais capazes de aceder e interpretar o espírito, independentemente dos ensinamentos da Igreja?
Nós temos uma responsabilidade para com a nossa tradição e a nossa herança. É importante. Mas não podemos levá-la como fundamentalistas. A Bíblia pode ser levada à letra ou levada a sério. Literalmente ou seriamente. Seriamente significa pensar nela, pô-la no contexto, trabalhar com base nela; não ter um acesso naïf, literal, primitivo. O papel da Igreja e dos teólogos tem sido, ao longo da história, interpretá-la, dizer como as coisas devem ser interpretadas. A tradição é um rio de águas correntes, de recontextualização, de reinterpretação… O mesmo texto é lido e interpretado de formas diferentes quando o lemos em criança, em adulto ou em velho. Lemos o mesmo texto e entendêmo-lo de formas diferentes, se o lemos depois do jantar de domingo ou numa prisão, ou quando estamos doentes. A Bíblia explica-nos o sentido das nossas situações de vida, mas num círculo hermenêutico, as nossas situações de vida ajudam-nos a entender melhor o texto. Tem de haver sempre um círculo hermenêutico. Se nos limitamos a repetir mecanicamente o que os nossos pais e avós nos disseram, terá um significado diferente. O próprio sentido de algumas palavras está a mudar, o contexto está a mudar. O papel da Igreja e dos pregadores é sempre a reinterpretação. E isso tem de ser feito com responsabilidade: não é acreditar no que queremos.
Mas o que propõe é uma espécie de hermenêutica popular, digamos assim? O que significa: eu posso seguir, mas não tenho de depender exclusivamente das interpretações feitas pela Igreja, pelos bispos, pelos padres? Posso, também, ter um acesso pessoal aos textos e fazer as minhas interpretações?
Bom, é parte do ensinamento da Igreja. Existe o magistério da Igreja, obviamente, o magistério dos bispos. Existe também algum magistério dos teólogos — que deve ajudar o magistério dos bispos, deve ser complementar. Por vezes, há tensões, o que é normal. O desafio é irmos sempre um pouco mais fundo: tem de haver um diálogo entre o magistério dos bispos e o magistério dos teólogos. E também existe este consensus fidelium, o sentido dos fiéis, do povo de Deus. O magistério, quando interpreta a palavra de Deus, tem de ter em conta as experiências de vida e as experiências de fé das pessoas. É algo muito responsável. Não proponho uma abordagem superficial. É um caminho muito exigente, que temos de levar a sério: sim, o magistério é o garante da fidelidade à tradição, mas também tem de haver a teologia e também tem de haver as experiências de vida das pessoas. Todos têm de encontrar o seu caminho, porque há tantas formas diferentes de acreditar, que mudam no nosso tempo de vida: é diferente na infância, na idade adulta e na velhice. Há alguns textos na Bíblia que só são acessíveis aos velhos! Penso no Eclesiastes e na ideia do cansaço. Percebo agora, mas não percebia quando tinha 20 anos, o que é este cansaço da vida. Também o livro de Job, por exemplo, que penso que é talvez o melhor e mais profundo livro do Antigo Testamento: quem nunca teve uma experiência de sofrimento não o consegue compreender. A fé cristã é também uma experiência com a reconciliação e com o perdão — e penso que as crianças não tiveram ainda uma experiência com o pecado, com o significado mais grave desta experiência.
Nem com o sentido do arrependimento, por exemplo.
Exato. Penso que é necessária alguma experiência de vida.