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A Casa dos Passarinhos entra na restrita lista de endereços lisboetas recomendáveis para peixe grelhado a preços honestos – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 11, 2024

A utilização do fogo é estruturante da inteligência humana. Dominamos o segredo há pelo menos 40 mil anos e a evolução da espécie beneficiou tanto disso como dos polegares oponíveis, do pensamento abstrato ou da invenção do autoclismo. Graças a Prometeu, a Humanidade aprendeu a resguardar-se do frio e afugentar predadores, iluminar as noites e grelhar carapaus. Mas esse avanço tarda em chegar a Lisboa.

Não é fácil encontrar nesta cidade quem saiba domesticar o fogo e a grande vítima da inépcia é o peixe. O resultado anda muitas vezes entre o ressequido e o carbonizado — por isso adotámos o molho à espanhola, espécie de desfibrilador para chicharros moribundos — e chego a imaginar que todos os pirómanos foram condenados a trabalhos forçados na grelha (por favor, senhor primeiro-ministro, não leve isto a sério). Daí começar este relato com um aplauso à Casa dos Passarinhos.

Na primeira das minhas visitas recentes, lancei-me a um besugo. Chegou escalado, coisa que à partida se desaconselhava para o porte do bicho, mas ainda assim gordo e saboroso, sem sinal de ter sido tocado pela chama. O feito repetiu-se com um cantaril, igualmente aberto, húmido e dourado pela brasa. Decido portanto incluir este lugar com nome de gaiola na restrita lista de endereços lisboetas recomendáveis para peixe grelhado a preços honestos.

Chicharros, jaquinzinhos e carapaus de corrida

Estamos num clássico da cidade e pelo menos desde 1923 que a esquina da Rua Silva Carvalho com a Rua de Campo de Ourique é ocupada por uma casa de pasto. A evocar esse estatuto centenário, a sala interior expõe grandes ilustrações da Lisboa de antanho, do tempo em que toda a mobilidade era suave, os cavalos circulavam por aí e os dejetos de cão não estavam no topo das preocupações do bairro.

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A casa acomoda umas 70 pessoas de cada vez, chega a rodar mesas três vezes por refeição, e está sempre apinhada menos ao domingo, que é o único dia em que não abre. A gestão da sala é apertada e um olhar mais desatento pode até deixar a impressão de que há mesas guardadas sem que algum cliente as tenha reservado. Já um olhar atento confirmará isso mesmo.

Na Casa dos Passarinhos há um certo ambiente de azáfama permanente e a maioria dos empregados tem aquele ar altaneiro, mais espanhol que o molho dos carapaus. A verdade é que não passa de um estilo e a paciência compensa. Depois de meia dúzia de investidas, perde-se o estatuto de ave de arribação, o cliente passa a freguês, e o serviço passa de atento a atencioso. Mas voltemos ao peixe.

A segunda refeição divide-se entre um chicharro grelhado e uns jaquinzinhos fritos. Do primeiro, digo-vos das boas: bojudo e a escorrer Ómega 3, sem sinal de carvão nem necessidade de disfarce castelhano; dos segundos não direi pior: calibre certo, bem fritinhos, firmes e saborosos, acompanhados de um simpático arroz de tomate, malandrinho qb.

A diversidade do peixe português reflete-se na língua portuguesa — e creio que é este o tópico desta minha segunda ida aos Passarinhos. Senão vejamos: eu poderia simplesmente dizer que vieram duas doses de carapaus para a mesa — não estaria a mentir, mas faltava à verdade. Para um camone, é tudo mackerel. Seja carapau ou chicharro, cavala, sarda ou besugo: mackerel. Já nós, os indígenas, refletimos a diversidade do mar na banca de venda e na prateleira semântica.

E nem precisamos trocar o nome ao peixe para mudarmos inteiramente de assunto. Às vezes, basta afinar o grau do substantivo: se digo carapau, falo de um bicho que merece grelha; se digo carapauzinho estou a recomendar fritura. Os diminutivos e aumentativos fazem milagres na língua portuguesa e a diferença entre um cabrito e um cabrão vai muito além do tamanho do animal.

Quase tudo menos passarinhos

A carta dos Passarinhos é farta, tem umas trinta entradas fixas, mais meia dúzia de pratos do dia, a maioria de grelha, tacho e fritadeira. Mas também de pedra. A casa é, aliás, justamente afamada pelo naco na dita, que numa terceira visita testo em versão novilho (há outra, alegadamente mais nobre, com naco do lombo). É uma peça generosa, toda ela proteína, índice mínimo de gordura, coisa muito ao gosto da moda e do meu cardiologista, mas lamentável para a suculência da carne. Chega crua sobre a pedra a ferver, besuntada apenas com um nadinha de alho, servida com umas batatas fritas regulares e duas maioneses, e deixa-me a fazer má vizinhança a tarde inteira (durante a refeição, por conta da fumarada; depois dela, por conta do alho).

A lista é extensa, variada e fatalmente desigual. Noutro jantar divide-se uma belíssima a costeleta de novilho, marmoreada e bem selada, que mais uma vez atesta a competência do grelhador; e um trágico lombinho de porco na frigideira com gambas, a carne em rigor mortis, ensopada numa molhanga feita noutro código postal.

Acresce que em todas as visitas lamentei uma certa pobreza de acompanhamentos, fossem os legumes cozidos mortiços e aguados que escoltavam o peixe, ou a salada desenxabida que montava guarnição à carne. Mas também encontrei umas belas batatas a murro e um ótimo arroz de feijão que guardava umas pataniscas aceitáveis — certas na fritura, médias na altura, desmaiadas no tempero.

Ficou por provar a açorda de gambas, outro cartão de visita da casa. Mas não escapou o choco frito, polme certinho, fritura enxuta, que os Passarinhos gabam de ser tão bom como os melhores de Setúbal. Não é. A falta de sabor diz-me que o bicho merecia ser temperado com mais tempo; o toque borrachoso diz-me que merecia ser servido com menos.

Em suma, na Casa dos Passarinhos faz-se muita coisa, mas nada de passarinhos. Acho por bem deixar esta advertência porque o mundo anda muito literal (exceto no que toca à palavra literal, que agora é moda usar em sentido figurado). Aproveito para estender o mesmo aviso à Casa dos Bicos.

Hei-de voltar. Talvez quando os carapaus estiverem gordos outra vez.

Casa dos Passarinhos. R. Silva Carvalho 195, 1250-249, Lisboa. Tel.: 21 388 2346. Encerra ao domingo

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.





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