Interessa-me pouco o objecto desta CPI que marca a estreia pelo Chega do exercício dos direitos potestativos para constituir comissões parlamentares de inquérito. Considero-o um exercício de voyeurismo e de intrigalhada político-jornalística, tendo a desconfiança e a má-fé por combustível e as instituições como alvo, sem qualquer ganho para o país. Veremos como acabará. Em nada, certamente.
A CPIGTMZ, acrónimo revelador, não é mais do que uma barraquinha de feira para o deputado André Ventura alvejar toda a gente – como aprecia – e, em especial, o Presidente da República – sua especial predileção. O caso é um enredo esticadinho para atingir o Presidente da República, sabendo-se que sem fundamento, mas fingindo-se que não se sabe. Escarafunchar onde se sabe nada haver sempre alimenta o falatório, simula que se procura, gera atritos, conflitos e mal-entendidos, forja falsos “escândalos” de “aahs!” e “oohs!”, cava suspeições, para acabar em nada – em suma, a política no pior.
Duas gémeas, de ascendência portuguesa, nascidas no Brasil em 2018, recebem diagnóstico de extrema gravidade: atrofia muscular espinal, doença muito rara, de tratamento igualmente raro. Os pais, sobretudo a mãe, movem tudo em busca de uma resposta clínica adequada. Em 2019, o caso de outra criança portuguesa (o “caso Matilde”) faz notícia e os pais das gémeas concentram-se em Portugal: aqui, havia resposta. A mãe tinha a nacionalidade portuguesa e obtém-na também para as bebés. Usando diferentes vias, consegue que as crianças sejam vistas clinicamente no SNS, onde lhes é confirmado o diagnóstico e prescrito o Zolgensma. Este é administrado em 2020. Em 2023, três anos depois (!), rebenta o “escândalo” que ainda não se dissipou: tratar as crianças foi “crime”! Este falso escândalo é que é o verdadeiro escândalo.
O enredo começou a partir do conhecimento de o Presidente da República ter recebido um pedido do filho, residente no Brasil, insinuando que o Presidente forçara uma “cunha” pelo sistema abaixo. Já se sabe que não foi assim, além de haver dados suficientes que mostram serem as gémeas beneficiárias legítimas do tratamento recebido. Mas o enredo era poderoso para a política de chiqueiro: Marcelo como alvo, um secretário de Estado frito pelo caminho, um tratamento de quatro milhões de euros, em favor de “umas brasileiras”, com nacionalidade obtida “em 14 dias” (falso), uma teia de ramificações e compadres, num caldo de favorecimento, com discriminação e preterição de outras crianças (falso). Um alvo grande, dinheiro de encher o olho, estigmatização de “estrangeiros”, favores de poderosos – este o guião.
Custa-me ver uma comissão parlamentar a rodopiar em torno deste circo, pisoteando a verdade, troçando dos deveres públicos, mostrando falta de compaixão, servindo o populismo mais selvagem, abalando as instituições do país e violando a Constituição. E também não percebo o que se meteu o Ministério Público a fazer neste caso. A investigar uma cunha? Mesmo que houvesse uma cunha (que não houve), o Ministério Público, agora, investiga cunhas? Será por perder tempo com cunhas, que não se ocupa a sério da grossa corrupção?
Quando todo o envolvimento deste caso anda no eixo do que chamamos, no direito penal, de “direito de necessidade” ou de “estado de necessidade desculpante” (arts. 34.º e 35.º do Código Penal), por que se quer fingir criminalizar actos que nunca o seriam, pois teriam sido ordenados a salvar a vida das gémeas? É assim tão difícil ver a realidade no seu conjunto? Ou só se quer ver o Presidente Marcelo para assestar a besta e o ferir?
Vi ou ouvi, em directo, no fim de Junho, partes da inenarrável audição de Daniela Martins, a mãe das gémeas. Fiquei com indignação e vergonha alheia pelo desempenho de André Ventura e alguns deputados. Estou certo ser assim com todos os portugueses de bem. Fiquei bem elucidado sobre a rota desta CPI, onde todos os limites seriam rebentados. Mas é bom que a Assembleia e os deputados guardem este vídeo de quatro horas e seus vários momentos de velhacaria contra uma mulher, violentada na sua condição e dignidade. Será bom rever, para recordarmos tudo aquilo que não queremos. Um inquérito parlamentar não é o mesmo que o interrogatório de um cabo-de-esquadra no posto de Rilhafoles. Por isso, desliguei.
Desta CPIGTMZ, Comissão Parlamentar de Inquérito – Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma, só quero saber duas coisas:
- se as crianças tratadas com o Zolgensma se encontram bem e, graças ao medicamento, têm recuperado (e em que medida), assim como qual o prognóstico para o futuro;
- se a investigação médica e farmacêutica já produziu, entretanto, outro medicamento mais eficiente e qual o preço, hoje, de uma aplicação de Zolgensma e/ou alternativa.
Não sei se alguém na CPI já se interessou minimamente pelas crianças e, para o futuro, sobre se casos semelhantes já terão tratamento mais acessível quer em qualidade clínica, quer no custo. Estas informações interessam-me e gostaria de ter acesso a elas. É o mais importante quando temos, do lado de lá, doentes com graves padecimentos e prognóstico fatal e, do lado de cá, o SNS, que existe para cuidar e tratar. Temos como os tratar? Quanto custa?
Estando no nome da CPI – “Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma” – não é aceitável que ninguém cuide das crianças e a comissão parlamentar sirva apenas para interrogatórios irados e intimidatórios, ao serviço da politiquice mais reles e de propósitos inconfessados.
Há outro problema, porém, de que me dei conta nesta semana e que é sério e grave. A comissão é um golpe de Estado: põe o Presidente da República a responder politicamente ao Parlamento – e a verdade é que não tem de o fazer, em caso nenhum. Ora, num regime constitucional, o que um órgão de soberania não pode fazer é porque não deve fazê-lo. O golpe de Estado está em transformar um regime semipresidencialista num regime parlamentarista, em que o Parlamento, que exige contas ao Governo, quer também exigi-las ao Presidente da República, em violação do princípio da separação de poderes. Isto é intolerável.
Nesta semana, porque viajava de carro, em dois dias sucessivos, fui ouvindo em directo parte das audições de Fernando Frutuoso de Melo e Maria João Ruela, respectivamente chefe e assessora da Casa Civil do Presidente da República. E dei-me conta, pelo tom do deputado André Ventura, que agia como se a Presidência devesse satisfações à Assembleia, que quer e poderia julgar. Foi evidente, em diferentes momentos, que as crianças são mero joguete instrumental para o líder do Chega chegar onde quer: a pele de Marcelo Rebelo de Sousa. Terá de escolher outro desporto, que, por este, não o pode fazer.
O Presidente da República é o órgão supremo do Estado que, politicamente, presta contas directamente a todos os portugueses. O Governo, sim, que resulta de investidura parlamentar, presta contas ao Parlamento.
A Constituição não deixa qualquer dúvida. A forma como é definido o Presidente da República, órgão que garante “o regular funcionamento das instituições democráticas” (art.º 120.º), coloca-o acima de todas elas. Os deputados têm poderes de “fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública” e para “requerer e obter do Governo ou dos órgãos de qualquer entidade pública os elementos, informações e publicações oficiais” (art.º 156.º, 1 d) e e)) – mas não têm estes poderes sobre o Presidente da República. Lendo os art.ºs 161.º, 162.º e 163.º, referentes à competência da Assembleia da República, em matéria política e legislativa, de fiscalização e quanto a outros órgãos, não há sombra de qualquer competência parlamentar quanto ao Presidente da República, salvo testemunhar a sua tomada de posse, dar assentimento a que se ausente do território nacional e promover o processo de acusação por crimes no exercício das suas funções (outro circo por que André Ventura já se aventurou, estatelando-se) – e, ao contrário, são várias as competências parlamentares quanto ao Governo e seus membros. O art.º 178.º, quanto a comissões parlamentares de inquérito, não abre qualquer excepção ao estatuto constitucional do Presidente. E os art.ºs 190.º e 191.º estipulam a responsabilidade do Governo e dos seus membros perante a Assembleia da República, não havendo, como todos bem sabemos, qualquer norma similar para o Presidente da República.
O Regimento da Assembleia da República acolhe este quadro constitucional e, no art.º 233.º, 1, estabelece: “Os inquéritos parlamentares destinam-se a averiguar do cumprimento da Constituição e das leis e a apreciar os actos do Governo e da Administração.” Clarinho, clarinho. Este perímetro está certo, razão por que um inquérito parlamentar não pode extravasar estes limites, invadindo a Presidência da República ou examinando actos do Presidente. Se o fizer, comete um “golpe de Estado”: subverte o sistema de governo e gera balbúrdia institucional de consequências imprevisíveis.
Olhemos, então, esta norma do art.º 6.º, n.º 2 do Regimento desta CPIGTMZ: “Gozam da prerrogativa de depor por escrito, se o preferirem, o Presidente da República e os ex-Presidentes da República por factos de que tiveram conhecimento durante o exercício das suas funções e por causa delas.” Esta norma ofende claramente o Regimento da Assembleia (ao violar o perímetro definido para as CPI) e choca de frente com a Constituição. O Presidente da República, conforme à Constituição, não é que responda oralmente ou por escrito: não responde; não pode ser perguntado. Ponto final.
Considero esta irregularidade muito grave e deve ser atalhada de imediato. Em caso algum, pode o Presidente da República ser colocado em posição de dependência ou subordinação da Assembleia da República. É o Presidente que preside à República, não pode ser comandado ou julgado pela Assembleia. Pode ser essa a ideia do líder do Chega. Mas tem de ser uma ideia só dele, não pode ser uma ideia do Parlamento, nem de uma sua comissão. A Assembleia da República não só deve obediência à Constituição, como deve dar o exemplo e fazer pedagogia geral de democracia e respeito pelo Estado de direito.