Uma expressão fundamental no âmbito das teorias da democracia resulta da política norte-americana e é traduzida habitualmente como “a sala fumarenta das traseiras” [smoke-filled back room]. De acordo com os historiadores, ela remete para uma circunstância histórica particular: em 1920, os delegados republicanos juntaram-se para escolher o seu candidato em Chicago, mas após vários dias de votação não foi possível chegar a consenso. Os velhos dirigentes partidários reuniram-se, então, numa sala privada até decidirem que o nomeado seria Warren G. Harding. Como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt contam em Como morrem as democracias,
“A Velha Guarda, como os jornalistas lhes chamaram, serviu-se de bebidas, fumou charutos e discutiu noite dentro como sair do impasse para chegar ao candidato de que os 493 delegados precisavam para a nomeação.”
Com o tempo, a expressão “smoke-filled back room” acabou por assumir um sentido metafórico para a circunstância de importantes decisões políticas serem tomadas pelo grupo restrito que detém o verdadeiro poder nas instituições (senadores, barões, elites). Contudo, ao longo das décadas seguintes e com o aprofundamento democrático das sociedades ocidentais, a ideia de decisões tomadas na sala dos fundos (cada vez mais higienizadas) tornou-se progressivamente menos popular: essas decisões eram entendidas como reveladoras do fosso existente entre representantes e representados, pelo que não representavam verdadeiramente os interesses da maioria.
No caso norte-americano, o momento de mudança aconteceu no final da década de 1960, em particular após a violência que marcou o congresso democrata de 1968 em Chicago, entre o assassinato de Robert Kennedy dois meses antes e os protestos contra a Guerra no Vietname. As imagens de violência que marcaram o país conduziram à publicação, em 1971, do relatório McGovern-Fraser, que, entre outras medidas, recomendava um sistema de primárias presidenciais vinculativas. Nas palavras de Levitsky e Ziblatt,
“pela primeira vez, as pessoas que escolheriam os candidatos presidenciais de cada partido [os delegados] não estariam ao serviço de líderes partidários nem teriam a liberdade para realizar acordos de bastidores na convenção; em vez disso, refletiriam fielmente a vontade dos eleitores nas primárias do seu estado.”
Um aprofundamento democrático deste tipo, embora parecesse necessário, traduziu-se na impossibilidade de os partidos continuarem a funcionar como guardiões da democracia, fiscalizando, na medida do possível, a qualidade dos candidatos e exercendo sobre eles algum tipo de controlo. E, assim, importava perguntar: “As primárias vinculativas eram certamente mais democráticas. Mas poderiam elas ser excessivamente democráticas?”
James D’Angelo e Brent Ranalli debateram-se com o mesmo tipo de reflexão quando, em 2019, publicaram na Foreign Affairs um provocador artigo sobre um dos princípios basilares dos sistemas democráticos atuais – o princípio da transparência –, considerando que esta gerava, apesar de virtudes eminentemente democráticas, efeitos perversos.
A sua análise debruça-se, em particular, sobre a questão do lobbying, cuja regulação, visando maior transparência, acabou por prejudicar o interesse público. Mas o argumento é especialmente relevante quando permite compreender o impacto que a transparência teve na polarização da política norte-americana das últimas décadas. Vejamos em que medida.
Embora o apoio à ideia de governo aberto e transparente seja hoje praticamente universal, nem sempre foi assim:
“Antigamente, o secretismo era visto como essencial para um bom governo, especialmente quando se tratava de elaborar legislação. Aterrorizados com as pressões externas, os redatores da Constituição dos EUA trabalharam em estrita privacidade, fechando as janelas do Salão da Independência e colocando sentinelas armadas à porta. Como Alexander Hamilton explicou mais tarde, “se o processo deliberativo tivesse sido aberto, os clamores das fações teriam impedido qualquer resultado satisfatório”. James Madison concordou, afirmando: “Nenhuma Constituição teria sido adotada pela convenção se os debates tivessem sido públicos”.”
A verdade é que “a sala fumarenta nas traseiras” permitia diálogo, negociações e cedências e aumentava a possibilidade de os partidos chegarem a acordo, uma vez que não estavam sujeitos à pressão dos seus eleitores, nomeadamente das suas fações mais ativistas. Como disse Robert Luce, congressista republicano do Massachusetts que escreveu um manual sobre o processo legislativo: “Atrás de portas fechadas, o compromisso é possível; perante os espectadores, é difícil”.
Paradoxalmente, a política feita às claras dificulta o processo político, e o mecanismo de representação – de distanciamento – é perturbado pela exigência de pureza ideológica e partidária por parte das fações. O antagonismo aumenta e a polarização política torna-se inevitável.
Estas considerações devem, então, alertar-nos para uma certa fetichização da democracia, como se ela fosse a solução para todos os problemas e nunca implicasse prejuízos. Feliz ou infelizmente, isso não é verdade. Como temos visto em textos anteriores, a lógica de politizar todas as áreas da vida, aplicando princípios democráticos nas dimensões da esfera privada, gera efeitos perversos. Mas o argumento vai ainda mais longe: até no domínio político, mais democracia pode ser democracia a mais.
Um bom exemplo disso, entre nós, é o que tem acontecido com o Livre e a sua reivindicação de ser um partido-modelo para o futuro enquanto partido verdadeiramente democrático. Esta afirmação passaria, nomeadamente, pela consagração de primárias abertas como forma de aprofundar a democracia (regulamento aqui), um desejo que Mafalda Pratas capta com a expressão “romantização da horizontalidade da política”. O Livre seria, assim, um partido aberto como forma de expressar confiança numa espécie de natureza democrática do ser humano.
Na prática, o partido tem passado por sucessivas dificuldades institucionais, com a eleição, primeiro, de Joacine Katar Moreira e a revelação de que figuras individuais não têm qualquer pejo em usar o partido para promover interesses pessoais; e, agora, com o processo atribulado de escolha de Francisco Paupério como primeiro candidato na lista para as eleições europeias. A ausência do número dois da lista, que não está a fazer campanha, e o quase desaparecimento de Rui Tavares (apareceu, no sábado, pela primeira vez) levaram mesmo a que se perguntasse, no podcast Soundbite, se o líder do partido deseja, na verdade, que Paupério seja eleito.
Estas são, provavelmente, as dores de crescimento normais de um partido recente, que se confronta com as limitações das suas próprias crenças democráticas. E pode aprender muito com a realidade: as instituições, para serem capazes de desempenhar os seus propósitos, precisam de regras, compromisso e uma certa dose de verticalidade – pelo que, até na política, a democracia tem os seus limites.