Rua do Benformoso? Martim Moniz? Por uma rara coincidência uma parte da história da minha família em Lisboa começa exactamente aqui, e é uma história de migrações. Foi naquela rua que o meu avô, quando veio trabalhar para Lisboa no início do século passado, um “migrante interno” que chegou à cidade ainda criança, teve o seu primeiro emprego (trabalho infantil, naturalmente), e como simples marçano. E depois foi naquele largo que os meus avós viveram até morrerem, num prédio que já não existe e no qual eu, na minha meninice, tinha medo de subir as escadas às escuras.
Claro que esta memória muito pessoal importa pouco para o debate destes dias – na verdade nada parece ter importância nesse debate. A única coisa que conta é uma fotografia partilhada nas redes sociais. É comum realizarem-se rusgas naquela zona de Lisboa? Sim, é, há vários antecedentes, mas prefere-se ignorá-los. Havia queixas de criminalidade na zona? Essa parte quase ninguém contesta, apenas se desvaloriza. A polícia costuma pedir às pessoas para se encostarem à parede enquanto as revista? Tudo indica que sim, sendo essas cenas mais comuns na imediação de estádios de futebol, mas tendo até acontecido uma semana antes ali bem perto, junto ao Rossio, com imagens mostradas nas televisões.
Num tempo dito “de emoções” e não de razões, tudo o que parece contar, sobretudo nos círculos bem pensantes, é o que “sentiram” ao olhar para uma imagem, tudo o resto não interessa. É assim que se imaginam humanos, ignorando que há outros, muitos outros, que têm também direito à suas emoções e às suas percepções – mas esses, como sabemos são “os deploráveis”, assumam eles as formas que assumirem (em Portugal costumam dar-lhes outros nomes, menos simpáticos mas igualmente reveladores).
É por isso que não regresso aos argumentos de Helena Matos ou Helena Garrido, entre muitos outros, pois à vezes sinto que a simples racionalidade ou o mais elementar bom senso esbarram na mais teimosa vontade de não querer ver, não querer escutar, não querer pensar. Vou antes tentar mostrar como, seguindo por um caminho em tudo idêntico, em tudo obediente aos mesmos ditames de um novo sectarismo, a esquerda nos Estados Unidos preparou o caminho da sua derrota e a nossa esquerda está a escavar também a própria cova.
Mas comecemos pelo princípio: porque é que os democratas perderam as eleições nos Estados Unidos? Porque é que as perderam contra um candidato que, de acordo com o “consenso” geral da imprensa e da Academia, era – nas versões menos agrestes – inapresentável? E como é que as perderam tendo podido gastar na campanha eleitoral duas vezes e meia mais dinheiro?
A resposta não está apenas na explicação (fácil) de “it’s the economy, stupid”, uma explicação que de resto exige vir com asterisco para diferenciar o estado da economia real (que é bom) da percepção do estado da economia (que é má). A resposta é mais complexa e radica na dissociação entre aquilo que preocupa as elites ilustradas (que são por regra democratas) daquilo que inquieta o eleitor comum, seja ele branco, latino ou mesmo negro (a maioria que deu a vitória aos republicanos e a Trump).
Alguns dias antes das eleições, no final de Outubro, um cientista político que costumo seguir, Ruy Teixeira (descendente de portugueses, mas para o caso conta pouco), publicou na sua newsletter um pequeno ensaio, The Progressive Moment Is Over, onde procurava explicar porque é que a “onda progressista” que parecia ter tomado conta dos Estados Unidos nos últimos anos estava a acabar ou tinha acabado mesmo. Ele não previa a derrota de Trump, mas constatava uma viragem de fundo no sentimento do eleitorado, que se estava a afastar dos democratas.
(Só para dar um pouco de enquadramento: em 2004 Ruy Teixeira co-autorou um livro extremamente influente, The Emerging Democratic Majority, onde defendia a tese de que as mudanças demográficas nos Estados Unidos favoreciam e favoreceriam os democratas; mais recentemente, já em cima das eleições presidenciais, publicou uma actualização cujo título diz tudo – Where Have All the Democrats Gone?: The Soul of the Party in the Age of Extremes.)
Mas regressemos à sua newsletter de há dois meses. Nela apontava quatro razões para a esquerda mais radical (aquela a que nos Estados Unidos se chama muitas vezes “the progressives”) ter perdido o eleitorado e ter arrastado na sua queda um partido democrata que se deixara seduzir pelas suas teses. Vale a pena recordá-las:
- Loosening restrictions on illegal immigration was a terrible idea and voters hate it.
- Promoting lax law enforcement and tolerance of social disorder was a terrible idea and voters hate it.
- Insisting that everyone should look at all issues through the lens of identity politics was a terrible idea and voters hate it.
- Telling people fossil fuels are evil and they must stop using them was a terrible idea and voters hate it.
(Ou, numa tradução livre da minha responsabilidade:
- Afrouxar as restrições à imigração ilegal é uma ideia terrível e os eleitores odeiam-na.
- Promover uma aplicação laxista da lei e tolerar a desordem social é uma ideia terrível e os eleitores odeiam-na.
- Insistir que todos devem olhar para todas as questões através das lentes da política de identidade é uma ideia terrível e os eleitores odeiam-na.
- Dizer às pessoas que os combustíveis fósseis são maus e que devem parar já de usá-los é uma ideia terrível e os eleitores odeiam-na.)
Lendo estas quatro linhas de orientação chega a fazer impressão como elas coincidem com as da esquerda mais radical em Portugal e como o Partido Socialista, sobretudo este Partido Socialista de Pedro Nuno Santos e Alexandra Leitão, se transformou numa espécie de encarnação lusitana dos disparates e dos excessos deste wokismo. As modas americanas chegam sempre com atraso à Europa e a Portugal, mas lá que chegam, chegam — e o que por lá muitas vezes é tragédia, por cá lembra mais uma farsa.
Não vou neste texto discutir ponto por ponto até onde o actual PS se deixou ufanamente contaminar pelas loucuras que nunca deixam de brotar das cabecinhas pensadoras à sua esquerda, mas reparem:
- Os socialistas acharam que a melhor política de imigração era (e é) uma política de “portas abertas”, uma linha de pensamento que a sua ex-responsável para o sector, Ana Catarina Mendes, se empenhou em aplicar até ao limite do absurdo, e do caos. Apesar das evidências os socialistas ainda não conseguem admitir o erro dessa política, algo que nos Estados Unidos os democratas já fizeram, mas tarde demais.
- A reacção dos socialistas a qualquer incidente que envolva polícias tem sido, por regra, desconfiar dos polícias. É verdade que nunca chegaram a extremos como a muito americana reivindicação esquerdista “defund the police”, mas não só estão lá perto como de alguma forma a praticaram, ao não terem resolvido o problema dos subsídios de risco, um tema entretanto tratado e resolvido pelo actual executivo. Quanto à tolerância com a desordem, pensem no que se passa nas nossas escolas – ou então nos ataques aos autarcas socialistas de Loures e de Alpiarça.
- O protagonismo que têm vindo a ganhar, como rostos públicos do PS, figuras como Isabel Moreira ou mesmo Alexandra Leitão, e agora também João Costa, bem como uma agenda legislativa onde nunca faltam temas “fracturantes”, não permitem dúvidas: os socialistas sentem real incómodo sempre que à sua esquerda algum lunático surge com um discurso mais radical não para o desautorizarem, antes por não se terem lembrado dele antes.
- As políticas ambientais dos socialistas não foram demasiado radicais quando estavam no Governo (porventura foram apenas irrealistas), mas veremos como evolui o seu discurso agora que o espaço público começa a ser perturbado pelos activismos das várias declinações de organizações como a Climáximo. A tentação está lá, e está lá porque o conjunto destas diferentes agendas tende a misturar-se e a confundir-se.
Ponto por ponto, com essa regularidade que apesar de tudo descobrimos num relógio atrasado, o PS repete os erros dos “progressistas” nos Estados Unidos. Mas o seu destino pode ser pior do que perder apenas algumas eleições.
Recentemente, numa coluna de opinião, revelava-se em todo o seu esplendor a confusão que vai em muitas cabeças desta esquerda que influencia o PS, percebe-se bem a forma como equiparam tudo a tudo como se tudo fosse igual desde que se encontre uma forma de encaixar esse discurso num retrato do mundo onde a única dicotomia é a de opressor-oprimido. Leiam isto, por exemplo: “ao acompanhar … o caso de dezenas de homens que violaram uma mulher em França e a rusga que humilhou dezenas de emigrantes em Portugal, não pude deixar de reflectir sobre as semelhanças entre ambos”.
“Semelhanças” é de facto a palavra adequada para aproximar estas duas situações, mas só desde que encaixem numa das narrativas vigentes: “ambas revelam uma perturbante continuidade nas dinâmicas de poder e na domesticação dos corpos”. Quod erat demonstrandum.
Dir-me-ão: o PS, pelo menos o PS oficial, ainda não diz estas coisas, mas a verdade é que já faltou mais para que tal acontecesse. E mesmo que não o faça já, a tentação é grande e o caminho está escancarado, bastando comparar, como eu acabei de fazer, o que levou a esquerda americana a perder o contacto com o eleitorado e aquilo que já está a levar os nossos socialistas a entrarem num mundo onde só conta a “bolha” dos bem-pensantes lisboetas e tudo o mais são os tais “deploráveis” (Pedro Nuno Santos chama-lhes “extremistas”).
Quer isto dizer que o seu destino será o mesmo? Num primeiro momento, talvez não, mas apenas porque o PS ainda conta com o apoio de um eleitorado fiel mesmo que envelhecido. Num segundo momento o seu destino arrisca-se a ser o da maioria dos partidos socialistas e sociais-democratas por essa Europa fora, em sistemas políticos cada vez mais fragmentados e onde pesam cada vez menos. Este último detalhe é muito importante: num país como os Estados Unidos, onde o sistema funciona com base na rotatividade de dois grandes partidos, quem perde hoje acaba sempre por ganhar amanhã, depois de um realinhamento. Em sistemas pulverizados com os europeus isso não está garantido, mesmo fazendo as mais estranhas alianças, como alguns socialistas europeus já estão a fazer.
Por isso o ponto central será sempre o mesmo: responde ou não este novo radicalismo a problemas reais e ao sentimento dos eleitores? A meu ver não responde, antes o contraria, mas ele parece ter tomado conta das nossas esquerdas, razão porque me permito interrogar se elas viverão realmente neste mesmo planeta e se algum serão capazes de perceber que surfar a onda de muitas redações não as aproxima dos eleitores, antes as afasta.
PS. Talvez eu nem devesse ter escrito este texto. Afinal, e pensando eu neste micro-mundo wokista, o melhor talvez fosse mesmo seguir o conselho de Napoleão: “quando um adversário está a cometer um erro nunca devemos interrompê-lo”.
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