A vida de Martha Stewart dava um filme. E a ideia já deve ser antiga na cabeça de muitos. Finalmente, concretizou-se. E deu um documentário, o que é melhor ainda do que uma longa-metragem de ficção, porque as voltas que esta história dá são mais impressionantes do que qualquer narrativa inventada. Já disponível na Netflix, Martha conta a jornada daquela que é descrita como a “influenciadora original” e esta frase de marketing muito acertada não só vende bem o conteúdo como é muito acertada.
Vinda de uma família de classe média baixa, Martha Stewart começou ganhar dinheiro como modelo, para depois se transformar em corretora da bolsa, reinventando-se de seguida como dona de casa exímia, depois lançando um negócio de catering e um império multimilionário de livros, revistas e programas de televisão. Quando estava no topo, foi apanhada no meio de um esquema de fraude e acabou presa durante cinco meses. O império ruiu, mas Martha Stewart, já depois dos 60 anos, reinventou-se da forma mais improvável possível: fez um roast a Justin Bieber (ou seja, gozou com a estrela pop como exímia aptidão, mas não só com a esta estrela pop particular) e uma amizade com Snoop Dogg.
Aos 83 anos tem agora uma nova vaga de fãs, mais jovens, e mais de quatro milhões de seguidores no Instagram. Tudo aqui é fascinante, começando e acabando na protagonista, que deu total acesso aos seus arquivos, mas que só responde ao que lhe interessa, da forma que lhe interessa e quando lhe interessa.
[o trailer de “Martha”:]
Para o documentário de quase duas horas, o realizador R.J. Cutler — responsável por projetos sobre Anna Wintour, John Belushi ou Billie Eilish — entrevistou amigos, colaboradores, irmãos, a filha e até concorrentes. Deles só ouvimos a voz, já que uma escolha deliberada ditou que só Martha Stewart é filmada, sentada frente a frente com a câmara. É ela o fio condutor do relato e, quando não lhe interessam as perguntas do realizador, desvia o assunto ou fica simplesmente a olhá-lo fixamente, à espera que seja ele a ceder.
Quando fala sobre as infidelidades do marido, Andy Stewart, é questionada sobre o caso que ela própria teve. “Isso não foi nada, não significou nada”, responde. E dela não temos nem mais uma palavra sobre o assunto. Não se interessa “por sentimentos”, palavras da própria. Quer saber o que a pessoa do outro lado está a fazer, não o que está a sentir. Nunca teve instinto maternal e isso é admitido pela própria e pela filha, Alexis, que descreve o ambiente familiar como um local onde teve de reprimir muita coisa.
Narcisista, controladora, implacável, abusiva. Martha Stewart é assim descrita pelo círculo próximo e por quem trabalhou com ela — embora os intervenientes refiram várias vezes que, se fosse um homem com estas características, não seria mal visto, mas sim elogiado. Não é que Martha Stewart esteja muito preocupada com o que pensam ou dizem dela — pelo menos não agora depois dos 80 anos, mas nem sempre foi assim. “Perfeitamente perfeito” era o seu mote e isso aplicava-se à imagem pessoal que construiu de forma imaculada e que servia de exemplo à ilusão que queria vender.