1 Cinquenta anos? Já? Mas foi ontem… Vivi-os todos e não foi como se nada fosse. Não se fica incólume a ter morado em múltiplos pontos de observação – alguns excelentes, Expresso à cabeça; nem indiferente, após ter testemunhado ao vivo, em directo e sem intervalo, a passagem pelo país, de cinco décadas, onde pouco ficou como era a não ser a nossa portuguesa forma de ser. Cinco décadas, vendo, ouvindo, escrevendo, debatendo, sobre elas. Um privilégio, claro, e antes do mais. A seguir, uma responsabilidade e cinquenta anos depois, uma exigência: contá-los.
2 Contá-los. Mas como, partindo de quê e de onde, tão diversos são os olhares, opostas as interpretações, dissonantes as narrativas? Partindo de mim própria, concluí. Contar e muito provavelmente, divergindo eu também das narrativas oficiais, oficiosas, ou nem uma coisa, nem outra. Discordando com intenção e propósito: nem tudo o que continuadamente venho a ouvir há meio século está conforme ao que julgo ter testemunhado, sabido, vivido no país. Melhor assim. Parecia-me um bom ponto de partida ser uma testemunha com assinatura. E depois tratar-se-ia do “como fazer” e sabe Deus que há poucas coisas tão delicadas quanto escolher – alguém, um modelo, um caminho, uma navegação.
3 Trapézio sem rede mas a empreitada era sedutora: eleger – o que é outra forma de escolher – alguns dos momentos mais decisivos destas cinco décadas – da liberdade de Abril, à revolução, do combate pelo estado de Estado de Direito à democracia plena. O país numa novíssima configuração política, hoje tida e assumida como uma democracia amadurecida. Mas porventura ainda não inteiramente amadurecida.
O meu objectivo tinha de ser – e foi – o de poder apresentar uma visão tanto quanto possível rigorosa e detalhada do que foi a caminhada do país – ou enfim, parte dela – ao longo dos últimos cinquenta anos.
E por uma dessas coincidências em que Deus, a vida, o acaso – acho que nenhum deles –, podem ser pródigos, um filho atirou-me um dia da primavera de 2023 com uma pergunta inesperada: “mas quando é que a mãe começa a fazer podcasts?” Subentendido: como o resto do mundo…?
Só me faltaria juntar esta espécie de inopinado vexame (andar miseravelmente a perder comboios informáticos de grande velocidade) ao estado de “reflexão” sobre o “cinquentenário”, para me atrapalhar.
Também durou pouco: e porque não justamente esse mesmo “modus faciendi”… um cinquentenário sob a forma de podcast?
Não que lhe conhecesse os segredos ou a técnica mas a intuição acendeu por mim a luz verde: assim seria. Correspondendo – e de imediato e com simpatia, nunca será demais dizê-lo – o Observador acolheria a ideia, a autoria e a produção: melhor era impossível.
4 Etapa seguinte, os protagonistas. Metendo mãos à obra na procura dos interlocutores certos, sabendo de antemão que a tarefa seria difícil para além de sempre subjectiva – o que é um interlocutor “certo”? – e mesmo assim nunca desistindo de os encontrar. Um leque de “alguéns” dotados da capacidade de uma “viajem” com memória: lembrando, contextualizando, analisando. Retendo os factos cuja alteração da sua ordem vigente até então, de tão vital, reclamasse o espaço e o cuidado que inteiramente mereciam: de um dia de Abril de 1974 ao fim do Império; do poder político-militar revolucionário à transição para um regime democrático civilista com a eleição presidencial de Mário Soares; da entrada na CEE, à troca do escudo pelo euro; da aprendizagem das regras da democracia e dos seus jogos partidários, à liberdade de expressão em novos títulos e écrans.
Da passagem do Portugal colonial de ontem para a cansada, recuada, democracia europeia de hoje.
5 Uma longa caminhada que exigiria o registo da luz tanto quanto o tracejado da sombra. Retendo progressos sociais consideráveis; índices reconfortantes de desenvolvimento; sólidos avanços em diversas áreas; confederações, sindicatos, associações, agora com estatuto de parceiros. Governos de pequena, média ou longa duração mas democraticamente escolhidos; grandes líderes políticos, portadores alguns deles, do grau de fundadores da democracia; grandes combates partidários; actos eleitorais desaguando por vezes em inesperadas maiorias absolutas ou inéditas estreias de maiorias parlamentares.
No “coté ombre” da cinquentenária caminhada, a pulverização da economia em 1975 e os seus efeitos de longa duração. Apesar das privatizações ocorridas na década cavaquista e no início do consulado de António Guterres o país conheceu três pedidos de ajuda externa financeira; dívida omnipresente; crescimento económico aos solavancos, mas sempre modesto; produtividade preguiçosa; desamor pela criação de riqueza; empresariado olhado ao viés há meio século. E nesta mesmíssima àrea económica – financeira relembrem-se –e poderiam ficar esquecidos? – os milhões e milhões de fundos, subsídios, empréstimos, ajudas, despejados sobre a pátria, quase sempre mais mal utilizados que bem empregues. Como uma fatalidade e não – como foi – uma irresponsabilidade.
Cinquenta anos que nunca conheceram uma linha recta e poderia ter sido de outra maneira? – mas avanços, recuos, esperanças, desesperanças. A desesperança pode por exemplo ser esta que é verdadeira: Portugal é hoje um país menos ambicioso do que merecia, mais envelhecido do que devia, de muito menor riqueza do que o necessário. E a chaga da emigração jovem e de uma natalidade que aumenta graças à imigração, impõem-nos uma constatação, dolorosamente indisfarçável: um jovem não escolhe nem prefere hoje trabalhar nem formar família em Portugal.
Quanta a esperança resumo-a da maneira que consigo:
E no entanto… nove séculos depois, cá estamos.
6 Os protagonistas sim, voltando a eles. Para, diante de um gravador e uma câmara de vídeo, dialogar comigo sobre aquilo que de tão forte, diferente ou nunca praticado, formatou outro regime: mudando a natureza institucional, política, económica, social de Portugal, e as suas formas de vida – conhecimentos, progressos, descobertas, ambições, hábitos, possibilidades, costumes. E por sobre isso tudo, antes disso tudo, a natureza do próprio país: um Portugal imperial overseas, trocava o seu lugar histórico por uma via europeia através de uma cadeira com o seu nome, num poderoso painel de outros países da Europa.
Mas naturalmente que também me competia atender – o que vim a fazer – à passagem do tempo e das suas circunstâncias sobre outras geografias. E a essa porventura ainda indefinível estranheza que nos trouxe o século XXI: onde atónitos e aflitos descobríamos que o que julgávamos conhecer de perto se tornava afinal irreconhecível e que a imprevisibilidade passaria a ser um dado essencial.
Olhando para trás e de relance, o 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos; a crise económica mundial, de 2008; a pandemia de 2020; Fevereiro de 2022, na Ucrânia; 7 de Outubro de 2023, em Israel. O mundo como ele está, visto daqui.
7 Tudo isto me ia conduzia naturalmente à descoberta de protagonista ou co-protagonistas; de intervenientes directos ou testemunhas muito próximas de alguns momentos desta história tão recente. Digo “alguns” intencionalmente: para muitos não seriam estes, para outros talvez até nenhum deles. São os meus.
Não foi porém fácil. No trajecto que me trouxe a este livro –.e nunca será demais agradecer a LeYa, o convite da passagem do momento efémero de um podcast para a substancia de um livro – a procura dos meus interlocutores, consistiu a mais delicada das etapas. Reclamou-me demora, conheceu hesitações, exigiu seriedade intelectual, pediu-me delicadeza.
Mas escolher é isto: um risco.
A todos eles comecei por mandar um mail – obviamente o mesmo para todos – explicando e explicando-me. Para que compreendessem o meu objectivo e o pudessem ponderar sem a minha presença ou a minha voz ao telefone.
E depois, aconteceu uma coisa que ainda hoje me parece extraordinária: todos me disseram que sim, todos foram primeiras escolhas. Meio caminho andado.
1 Começando pelo princípio como começam as boas histórias, qual seria o “bom” princípio desta? Portugal não começou numa primavera do século passado. Acudiu-me o período “Caetanista” como interessante ponto de partida. Se o país se desenvolvia com Marcelo Caetano e conhecera de início um arremedo de liberalização que a muitos convencera, os sinais vermelhos que se iam acendendo a um ritmo que exigia atenção, mostravam que o que estava, não ia durar. Pedi a João Amaral, grande amigo meu e íntimo amigo de há muito de Marcelo Rebelo de Sousa, que o “sondasse”: este projecto “viveria” da excelência dos viajantes desse tempo. Marcelo, filho do regime, vivera esses anos por dentro, conhecera intimamente alguns dos seus personagens, tivera intervenção cívica: não quereria ser ele o meu primeiro viajante? Ocupando-se do “antes” que o mesmo é dizer , abrindo a porta do 25 de Abril de 1974.
Ligou-me: queria sim. Vertiginoso: e quando, e onde, e como, e para quê?
Dias depois, chegou a data: seria num sábado à tarde, óptima notícia, redação meia vazia, recato, espaço. Chegou com um maço de apontamentos, o que espantou logo o António Carrapatoso, o Miguel Pinheiro e eu: Notas? Ele?
Marcelo e o caminho até à revolução
Com uma velocidade estonteante que ia produzindo uma oralidade indomesticável, voou sobre memórias, consultou os apontamentos, lembrou, explicou, contou.
Quando este primeiro episódio foi para o ar, ultrapassou em audiência o até aí imutável record do podcast diário da (excelente) Joana Marques. Um feito. Não do Presidente da República mas do interlocutor que eu convidara: Marcelo Rebelo de Sousa.
2 E para abrir a tal porta de Abril, nunca duvidei : Jaime Gama, claro. A minha admiração por ele é antiga e forte. Inteligência política, cultura polifónica e uma avaliação das coisas que raramente dispensa também o enquadramento irónico/sarcástico do seu olhar. Saiu cedo demais da política – julgo que não o lamentará –mas soube sempre e em todas as circunstancias, o que fazer com ela.
Jaime Gama: “Senti o que sentiram” no Capitólio dos EUA
Encontrámo-nos num pequeno “café” no Campo Grande – ao telefone ter-me-ia dito que não – expliquei ao que vinha: só podia ser ele a introduzir este cinquentenário. Foi preciso um segundo encontro, desta vez numa sala discreta de um hotel e depois foi ainda preciso um guião que ele ia corrigindo, por mail: ou porque “não era bem assim”, ou “porque estava longo de mais”, ou porque. Obedeci a tudo, ou era Jaime Gama ou o “25 de Abril” não seria bem contado. Recomendo mais do que uma leitura: à primeira, talvez não se apanhe de uma vez só, a subtileza, a contenção, a intenção, a ironia usada como distância.
A inteligência política pode ser um dom.
3 Não podia deixar de se seguir a saga da descolonização, fora o General Spínola que a abrira logo em Julho de 1974 num discurso que ficará na História. Sem – hélas – os seus grandes protagonistas ainda vivos, a escolha de um interlocutor teria de ser muito ponderada. A complexa natureza do tema levou-me a um historiador, amparada na opinião de dois bons “conselheiros”. E a seriedade intelectual de Rui Ramos, a qualidade académica, um profundo conhecimentos sobre o século XX português aproximavam-no naturalmente do que para mim seria um interlocutor “certo”. Rui Ramos “estudara” bem as àfricas e os Orientes onde se fala português; eu estivera – antes e depois das independências e muito mais do que uma vez – em todas essas longínquas geografias, do Atlântico ao Indico.
Ele estudara-as, eu conheci-as.
“Portugal em 1974 já não era o mesmo de 1961, mas não duvido que o luto foi maior em África do que aqui, onde praticamente não existiu”
Pensando bem, talvez a nossa longa conversa também tenha sido marcada por isso.
4 No início de 1975, a revolução já em curso, necessitava de um instrumento essencial: a posse da economia através da sua estatização. Um convenientíssimo “golpe” Spinolista – confrangedoramente mal amanhado, desorganizado, sem tropas nem destino – forneceu o pretexto: o tecido económico nacional foi pulverizado no dia 11 de Março de 1975, com consequências que duram até hoje. Pedro Ferraz a Costa sabe-o como poucos. Da janela da Confederação da Indústria Portuguesa que depois viria liderar, tinha visto –e percebido – tudo. Pedi-lhe para passar de novo pelo “Cabo do 11 do Março”. Dois encontros depois, ficou entendido que ele começaria por recordar a economia nacional antes de Abril de 1974 ,para só depois se ocupar de como ela tem sobrevivido durante meio século.
Pessimista crónico? “Mas como posso sê-lo” – perguntou-me à mesa de um restaurante – “se durante cinquenta anos nunca saí e nunca desisti?”.
Ferraz da Costa, ex-lider da CIP: “Assim, não!”
Um resistente.
5 Às vezes ainda me pergunto se a racionalidade e a própria realidade dos factos jamais triunfará sobre a narrativa oficial do “25 de Novembro”, sempre intencionalmente brumosa quando não declaradamente deturpada. Em face disso – e através do general Tomé Pinto – tentei deixar aqui não “mais uma” versão ou “outra” versão, mas o que julgo ser a história do que verdadeiramente ocorreu em Portugal durante o ano de 1975. Fi-lo com base no que –em livro nunca desmentido – me contaram com detalhe e memória Mário Soares e Melo Antunes sobre um processo revolucionário em curso no país. E fi-lo naturalmente também amparada no que eu própria vi e vivi. Mas era preciso o testemunho fiável de um dos intervinientes no combate essencial entre duas legitimidades, a democrática e a revolucionária: nesses momentos cruciais em que o país ardia, Mário Soares estava ao leme com o povo atrás dele e à frente, a ameaça real de uma guerra civil.
Lembra-se do 25 de Novembro de 1975? Está aqui
Disponível, amável, em excelente forma, o general Tomé Pinto, veio generosamente a minha casa três ou quatro vezes, “trabalhar”. Eu não pretendia novidades ou confidências mas ouvir uma história. O 25 de Novembro ficou aqui, embora – intuição errada? – me tivesse parecido que este general prestigiado e respeitado, pudesse ter ido mais longe. Mas os militares são antes de tudo militares, uma família, uma tribo. E quem sabe, quarenta e nove anos depois, há cicatrizes que já fecharam e algumas memórias que não se querem ressuscitadas. Deve ter sido isso.
6 Em Abril de 1975, as eleições para a Constituinte e o seu eloquente resultado tinham animado políticos e povo mas a legalidade democrática era ainda movediça. Um ano depois, era-o bem menos: a Constituição fora votada, o PS de Mário Soares ganhara as legislativas de Abril de 76, o general António Ramalho Eanes fora eleito Presidente da República por sufrágio universal, o primeiro governo constitucional tomaria posse nesse mesmo verão de 1976. Quatro etapas de primeira grandeza, um novo quadro institucional, muita esperança.
António Barreto foi um dos protagonistas desta outra estação política, como ministro da Agricultura de Mário Soares.
“Testemunhei o nascer do Estado de direito”
Começou por responder que sim ao mail antes enviado. Dias depois percebi que este senador levara o convite muito a sério: procurava cadernos, escrevinhava noutros, relia notas para se lembrar de si na pele de combatente contra a Reforma Agrária comunista. Um dia propôs-me que “falássemos melhor”, o que fizemos à mesa do Grémio Literário. Tempos depois viria a ouvir, pela sua voz, mais uma história bem contada – esta devia ser distribuída nas escolas. Retive o modo como quis recordar a sua própria caminhada política, com algumas surpresas, entre elas “a confissão pública, pela primeira vez, do seu maior erro político”. E aqui e ali, algumas mágoas, por entre os avanços e recuos do andar da carruagem portuguesa, de Abril de 1974, a Abril de 2024.
7 Apesar de dotado de instrumentos de navegação democrática, o país não navegava bem. Os governos caíam, houvera necessidade de ajuda financeira externa; os militares em sede próprias decidiam pelos civis; as ambições do Presidente Eanes extravasavam o seu cargo e a sua função: aos governos de Soares haviam sucedido três executivos de “iniciativa presidencial”: uma estreia política que enfurecera Soares e Sá Carneiro: o “presidencialismo” estava a caminho.
Meses depois, encenada pelo líder do PSD – era preciso fazer alguma coisa – há outra estreia: a “Aliança Democrática” – PSD/CDS/PPM/ Reformadores. Sabemos o resto.
Pareceu-me importante “ouvir” de novo Francisco Sá Carneiro, mesmo que por interposta voz.
António Capucho era secretário geral do PSD em 1979, ano da formação da AD. Reencontrei-o com gosto na Pastelaria Garret, do Estoril. Mais de quarenta anos depois, lembra-se como se fosse ontem, tem uma memória organizada. Trocámos mails, mandou-me um documento, voltei à Garret . “Em 1979 Sá Carneiro estava farto do jugo militar, das ambições de um Presidente que ele execrava, do mau rumo do país. Respondeu com a AD”.
Sá Carneiro ganhou o Governo com maioria, voltou a vencer um ano depois, faltava-lhe politicamente a Chefia do Estado. Acabou em tragédia.
“Faltou-lhe a Presidência e a derrota de Eanes”
A morte pode transformar a vida em destino, dizia Malraux.
8 Quase a chegar à estação do Bloco Central, com um caderno e um lápis na mão e diante de dois amigos pacientes e com melhor uso da mente que eu, perguntava-lhes “mas a quem entregar isto?” A resposta foi-lhes óbvia: António Vitorino claro, que integrara a coligação governamental PS/PSD como um dos seus ministros.
Ao telefone, quando ainda mal aludia ao que pretendia, a disponibilidade fora prontíssima: “alguma vez lhe disse que não?”
Expliquei porque lhe batia à porta: António Vitorino fora um dos artífices da Revisão Constitucional de 1982, vivera por dentro o governo do Bloco Central e a forte crise económica que levou a uma segunda ajuda externa, integrara a cerimónia da assinatura do Tratado de Adesão a então, CEE no dia 12 de Junho de 1985. E além disto – ou sobretudo? – fora um dos mais fortes combatentes políticos contra um “presidencialismo” que crescia.
“Eanismo”? Não! Vitorino relembra essa história
Veio a minha casa uma tarde e sagaz e loquaz, avivou-me a memória, correndo sobre as palavas mas sem nunca tropeçar nelas: “o Bloco Central foi a resposta partidária ao espectro do “eanismo”.
9 Falando um dia com Leonor Beleza sobre a consideração que tinha por Cavaco Silva, percebi que ter sido sua ministra fora, para ela, mais do que uma estrita colaboração política. Em certo sentido , quase um legado. “Significou um património precioso da minha experiência pessoal de vida.”
“O projeto durou 10 anos e duas maiorias absolutas. E acabou quando o próprio Cavaco Silva entendeu que era altura de se retirar“
Tendo o “cavaquismo” um lugar obrigatório na revisão de meio século de vida política, económica e social portuguesa, lembrei-me de Leonor. Sabendo de antemão que podia estar descansada na revisão de uma matéria ainda hoje narrativamente adulterada: a sua inteireza e a sua seriedade impediriam sempre o aplauso gratuito, o elogio sem fundamento. Reviu a década 1985/95, mas juntou-lhe a interpretação política do que testemunhara em directo: “Com esforço e trabalho é possível mudar as vidas e as experiências”. O esforço e o trabalho de um Primeiro ministro, conduzindo uma partitura com o seu nome.
10 Em 1985, fazendo do governo minoritário que chefiava um fortíssimo instrumento de combate político, Aníbal Cavaco Silva alertava os portugueses: estava ali para ficar. Mas apesar de quatro maiorias políticas absolutas e de um país que não ficara o mesmo quando deixou de o governar continuarem a produzir fastios Cavaco Silva não se distrai: continua não “a andar por aí” mas a ficar onde sempre esteve: a olhar para Portugal, sem desistir dele.
Um dia de verão de 2023, bati à porta do seu gabinete no Sacramento: estando certa de que ele era o mais bem sucedido dos políticos do regime a poder falar duma das maiores trans formações institucionais no país desde a desmilitarização do regime ou a entrada na CEE – por exemplo – convidava-o para lembrar a saga da Moeda Única.
Cavaco Silva e a adesão à moeda única: “Sem Kohl não havia euro. Venceu a resistência do povo alemão”
“Eu não sei o que é um podcast”. Atalhei que ele sabia da Moeda Única e do podcast sabia eu (que ainda não sabia). Seguiram- se duas lições sobre o tema, notas, números, datas e a estruturação de um questionário: ”Aceitei este convite só por se tratar do tema da Moeda Única. Vivi-o, estudei-o muito, publiquei um livro sobre ele, com um prefácio do Delors mas isso do podcast…”
11 Nos anos noventa do século passado o país vivia ilusionado: talvez tivesse deixado de ser pobre. Apesar do rugir das oposições, o “cavaquismo”abrira novos caminhos, revertera outros,a economia crescia. E havia novas televisões, auto-estradas e grandes eventos culturais –nacionais e internacionais – onde Portugal deixava boa assinatura. A seguir António Guterres continuou as privatizavações, inovou na educação, bateu-se pela ciência que não queria uma parente pobre.
O Guterrismo contado por Artur Santos Silva
Que país era este, que economia era aquela, de que tempos sociais e culturais se devem falar? Diz-se que os economistas e os agentes culturais se olham ao viés mas Artur Santos Silva desmente ambas as coisas, toda a sua vida prova o contrário: oficiou com êxito na Economia, deixou marca e memória na cultura portuguesa, promovendo ou liderando múltiplas iniciativas institucionais, civicas e culturais. Fui ao Porto perguntar-lhe se podia contextualizar esta época da nossa caminhada, onde havia alguma felicidade no ar. Ele podia. Um “alguém” sempre bem vindo.
12 Mais uma vez – como sempre e desde sempre – ouvi José Miguel Júdice dizer-me que sim. Encontrámo-nos nos “bastidores” da Sic onde ambos colaboramos e ambos prestes a entrar “no ar” quando subitamente, mais que um convite, fiz-lhe um desafio, o tema não era fácil: Sócrates. Mas quem podia passar ao lado de um Primeiro Ministro detido no aeroporto de Lisboa, ao vivo e em directo –televisões avisadas – no regresso de um voo de Paris como sucedeu com José Sócrates? Não eu. “Faço, faço” respondeu-me o José Miguel sempre com aquela nota vagamente irónica, indefinidamente melancólica que interdita qualquer ilusão.Há certos intelectuais assim mas fosse como fosse, eu sabia que a tarefa ficava entregue: Júdice pensa bem, observa bem, leu muito, conhece muito. (ás vezes justifica-se de mais, não precisa). Antecipei que o “socratismo” produziria uma conversa inteligente, interessante, oportuna. Foi definitiva. Depois dela…
José Miguel Júdice recorda Sócrates, “o primeiro político socialista a obter uma maioria absoluta”
13 Em 2011, Pedro Passos Coelho fez o que devia ser feito em Portugal. Foi com isso que se comprometera. E o que, desde o início da sua governação, lhe competia como primeiro ministro de uma coligação entre o PSD que ele liderava e o CDS, de Paulo Portas.
Durante quase cinco anos Passos Coelho, com uma mochila as costas que dizia Troika em letras gordas, governou um país exangue, conseguindo salvá-lo da falência e do descrédito internacional. Mas não fez só isso e era aqui que eu queria chegar:
Fê-lo sem a ascensão da direita populista: não foi com o seu governo nem com o ar desse tempo – et pourtant, tão propício – que o Chega viu a luz do dia; fê-lo em estabilidade politica e sem que nunca o regular funcionamento das instituições democráticas tivesse sido beliscado; fê-lo deixando semeado um futuro plausível para Portugal e com o país já a crescer economicamente. Os deuses deram- lhe a vitória nas eleições de 2015 mas não a possibilidade de provar aos portugueses o que seria capaz de fazer com essa vitória. Em 50 anos, conheço raras oportunidades políticas tão perdidas quanto esta.
Acompanhei de muito perto esta via sacra. Fui a S. Bento várias vezes, conversei com outros protagonistas, falei com intervenientes, Extraordinariamente, não se queixavam, contavam apenas. Uma dignidade em extinção.
Passos sobre ontem: “Os anos da troika? Perderíamos tudo se não corresse bem”. Sobre hoje: “Tenho uma relação descomplexada com o PSD”
Há anos, já longos anos, que peço a Pedro Passos Coelho que me recordasse tudo isso. Nunca consegui. Pela primeira vez, ficou agora tudo contado.
O documento de um estadista (devo-lhe esta palavra).
14 O país mudara de natureza, Portugal era agora europeu, a política fazia-se democraticamente, o voto tornara-se um hábito salutar, ganhavam uns, perdiam outros, ia-se vivendo.
Mas… onde estava e como agia a Igreja, permanente testemunha e amparadora de nove séculos de portugalidade? Acompanhara tudo isto? Com gosto ou desgosto? Mudara, avançara, interviera?
Socorri-me de Manuel Braga da Cruz, um dos mais destacados leigos católicos na reflexão sobre a Igreja. Humanista convicto e excelente retratista de Portugal e dos portugueses sobretudo em tempos recentes.
Manuel Braga da Cruz revê o curso da Igreja nestes 50 anos: “O ‘catolicismo democrático’ foi um dos fios com que foi tecido o 25 de Abril”
E depois… a sociedade, o povo, os portugueses? Como respondiam – e correspondiam – ao que de tão diferente, novo ou inusual ia acontecendo? Faziam-no inspirados pelos partidos onde votavam,ou mandatados por eles? Aderiam, reagiam, entusiasmavam-se, resignavam-se? Se não cabe aqui – nem se pretende – um tratado sociológico, Helena Matos, discorrendo sobre a sociedade portuguesa nestes cinquenta anos, regista mudanças, sublinha transformações, evoca novos costumes. Explica com autoridade própria e uma seriedade intelectual na qual se confia
15 Uma longa saga. Recapitulemos: primeiro, foi a “Geringonça” – governo PS com apoio parlamentar de comunistas e bloquistas. (Uma produção de António Costa, em estreia absoluta, política, para garantir, no parlamento, o número de deputados suficientes para formar Governo, o qual pertenceria eleitoralmente a Passos Coelho, vencedor das eleições de 2015.) Durou a legislatura. Das eleições seguintes desagua uma “geringonça” menos sólida, obrigando a uma governação “a la carte”: negociava-se caso a caso, ora com o PC, ora com o BE. Não corria bem – o Bloco saíra da pista –, havia dificuldades, impaciência, tensão. O PSD junta-se à impaciência das extremas esquerdas, o orçamento de 2022 é chumbado, o executivo cai. Sendo a política uma grande fornecedora de surpresa ,seguem-se mais: a convocação de novas eleições; uma surpreendente maioria absoluta socialista, um duplo desperdício, governativo e político: do ultimo governo de António Costa nunca rezará a história.
Fernando Medina, titular das Finanças, destacava-se neste governo medíocre, era melhor que ele, fez da descida da divida publica o seu combate (quando entrou no governo, Portugal estava como a Itália ou a França, num mau patamar, Medina deixou-a noutro melhor). Claro que saiu a sorte grande ao ministro com as receitas da inflação e claro que ele tinha que fazer melhor que Centeno – mas fez.
Um dia fui ao Terreiro do Paço: “quereria ele fazer-me uma visita guiada às governações socialistas?” No poder ou nos bastidores, Fernando Medina pertence a esta história – ao “costismo” – desde o princípio. Apesar do mais que previsível risco de ouvir uma visão açucarada do longo consulado socialista –que ouvi –foi a minha escolha.
Fernando Medina: “Aquilo que os governos do PS fizeram nas finanças públicas foi uma transformação estrutural da economia”
O delfim de António Costa – estou certa que Medina continua a sê-lo –reviu aqui, com enorme detalhe, informação, interesse (e açúcar), oito anos de poder socialista.
16 Espectadora do “Global”, falávamos muito, Paulo Portas e eu do seu programa televisivo dominical: discutíamos-lhe a forma e o fundo, cruzávamos semanalmente opiniões sobre alguns dos temas, e claro, elaborávamos muito sobre a política da “casa”. Concordando mas muitas vezes discordando , a nossa conversa ia durando no tempo. Talvez por isso foi quase naturalmente que Paulo Portas se tornou parte do mosaico destes protagonistas, tendo sempre eu em mente a qualidade do “Global. Além de que – e também naturalmente – ele se interessava genuinamente por esta navegação: como ia ela? ouvi-lhe dezenas de vezes ao longo de meses. Até que um belo dia – sem que muito nos tivéssemos preparado ou decidido – ele se sentou num estúdio de gravação comigo e fez desfilar o mundo lá dentro. Guiado pelo final do século passado com as suas certezas infundadas e a imprevisibilidade deste (tão incandescente que nos permite pensar se haverá próximo) Paulo Portas usou dos seus instrumentos: saber, atenção, critério, comunicação e claro, aquela crucial observância do lado justo das coisas.
Paulo Portas: “O Império desfez-se, as alianças não”
Foram cinquenta anos onde me apeei em dezasseis estações, numa viagem preparada no verão de 2023, iniciada nesse outono, e acabada em Abril de 2024.
Foi “isto” e foi “assim”? Eu estive lá: sei Mas se este livro pode ser importante para muitos leitores que também estiveram “lá”, será sobretudo importante para os que não tendo estado, precisam de saber como foi.
Óbidos, Setembro de 2024