Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal.
Fernando Pessoa
Decidiu o Governo comemorar a Batalha de São Mamede (Guimarães, Dia de São João, 1128), momento decisivo que prenuncia Portugal, na vitória de Afonso Henriques e seus aliados, sobre as forças comandadas por Fernão Peres de Trava.
Ao promover a data a exercício de celebração – tal como os 500 anos do nascimento de Luís de Camões (c. 1524) – e ao querer afirmar, até 2030, a Língua Portuguesa como língua de trabalho das Nações Unidas, fica expressa a vontade política de trabalhar a matéria da identidade nacional, com base em datas fundadoras, referências culturais e simbólicas sobre as quais pode haver convergência, assim como na importância contemporânea de um elemento identitário essencial – a língua.
O conceito de identidade é complexo e por vezes alvo de apropriações sectárias. O que é a identidade? Em termos simplificados, pode dizer-se que corresponde à construção social e valorativa de categorias e às distinções feitas a nível individual, nas quais se geram dinâmicas de inclusão e exclusão, assim como de organização pessoal, comunitária, normativa e territorial.
A identidade nacional, será uma elaboração política, que pretende promover a coesão dos membros da comunidade de referência, no limite de fronteiras, zonas de influência, ou, ainda, onde quer que se encontrem, no mundo. A identidade nacional é uma elaboração que só funciona se e quando os membros da comunidade se revêm nos elementos distintivos que se propõem, a título de identidade. Assim, a identidade nacional pode ser distinguida pelas características específicas que ligam os seus membros e pode ser apropriada por “estrangeiros” como fator de delimitação: nacional/estrangeiro. Assim, haverá a identidade portuguesa, espanhola, americana, japonesa, etc. Todavia, bem sabemos como é fluída esta ideia, quando confrontada com as situações de facto. Identidade portuguesa ou identidade de diferentes grupos sociais, económicos, políticos, culturais, dentro do território e dentro do mesmo cartão de cidadão? Identidade espanhola ou identidades galaicas, bascas, catalãs? Identidade americana ou identidades das populações migrantes da América? Identidade japonesa ou diferentes identidades geracionais?
Bem se vê como se torna difícil apropriar o tema, problematizá-lo e dar-lhe, de forma sintética, sentido e conclusão.
Em diversos momentos históricos, e, certamente, no momento atual, quando se fala de identidade nacional, há que problematizar a questão dos nacionalismos e dos seus efeitos.
José Gil, no seu artigo sobre o tema “Nação”, na Enciclopédia Einaudi, cita Louis Snyder, a propósito dos paradoxos que o nacionalismo provoca. Diz Snyder:” O nacionalismo reflete o caos da própria história. Enquanto fenómeno histórico, é sempre movediço, alterando-se segundo modelos imprevisíveis. É multiforme, desordenado, obscuro, irredutível a denominadores comuns”. E este autor conclui que, à medida que as diversidades culturais diminuem, o nacionalismo político aumenta e alarga-se. O nacionalismo, enquanto exacerbação das identidades nacionais, é um monstro que se alimenta das tensões e contextos de dada comunidade, ganhando, amiúde, forma, organicidade e ação através de lideranças populistas que reduzem o pluralismo e promovem a voz única. Foi assim na Alemanha nazi face aos seus cidadãos judeus, é assim no Israel atual face aos seus cidadãos palestinianos. Começa a ser assim, em Portugal, face a, por exemplo, cidadãos portugueses ciganos ou face a imigrantes. Em todos os casos referidos, generaliza-se, retira-se o valor de cada pessoa e torna-se a pessoa um bocado de carne informe que faz parte de uma massa: “os judeus”, “os palestinianos”, “os ciganos”.
Atualmente, quando falamos de “identidade nacional”, falamos do quê?
É um tema cuja aproximação se torna difícil, pois, como diz Eduardo Lourenço, Como todo o Ocidente, tornámo-nos “todo o mundo e ninguém“. Ou, indo para lá da referência de Jorge Dias à saudade como elemento identitário, afirma que nos perdemos no seu labirinto, nos labirintos da História ou daquilo a que chamamos, por vezes tão enganados, História.
Portugal abriu-se ao mundo como uma arca de Noé ao contrário – não se construiu o barco para evitar a aniquilação, a construção do barco foi movida pela aventura marítima, a salvação pela água.
A ampliação do olhar através do horizonte sem fim trouxe séculos de mar e de territórios, de poder, comércio, troca cultural. O núcleo territorial essencial, todavia, manteve-se quase intacto desde os fins do século XIII, como refere José Mattoso.
Mas o Portugal que se aproxima dos 50 anos do 25 de Abril distanciou-se, significativamente, dos elementos identitários que transportou durante a parte anterior do século XX.
Tornámo-nos todo o mundo e ninguém. Sim, a dissolução de elementos distintivos dificulta o acesso a elementos contemporâneos comuns, ao sentido de “comunidade portuguesa”.
E será necessária, uma “comunidade portuguesa”?
A minha afirmação é: sim. Vivemos num mundo conturbado, onde se luta, ferozmente, por identidades nacionais, como acontece na Ucrânia, em Israel, na Palestina. Mas não só. O Ocidente começa a fazer o discurso preparatório da guerra, não é impossível, que a fronteira da guerra na Europa, extravase da Ucrânia. Se tal acontecer, como se motiva a população ocidental para a sua defesa? Será que, aqui, tal como na Ucrânia, em Israel, na Palestina, existem as bases anímicas para dar a vida por uma delimitação de fronteira, por um território nacional, por uma comunidade que se identifica?
Há 2050 anos atrás, Tito Lívio, na introdução à sua História de Roma, dizia:
“À medida que a disciplina moral abrandava, os costumes foram-se relaxando pouco a pouco; decaíram cada vez mais e, finalmente, quase à beira do abismo, chegamos aos nossos dias incapazes já de suportar os vícios e de lhes dar remédio.”
Na Europa, em Portugal, hoje, temos a ambivalência da positividade do Estado Social, da liberdade de expressão e da negatividade da decadência de um sentido de hierarquia de valores e do modo como estes aglutinam, em seu torno, uma comunidade.
A identidade nacional é hoje um exercício de construção difícil, rodeado pelas ameaças do nacionalismo, da dissolução valorativa e da intoxicação comunicacional. Este último elemento, trazido pela Internet, acelerou os processos de erosão identitária e diminuiu os laços de pertença a comunidades alargadas, favorecendo o sentido tribal e a fragmentação.
É preciso criar e consolidar laços identitários contemporâneos, certamente, ancorados numa História, tradições e valores comuns, mas também na resposta solidária e fraterna aos novos desafios, percebendo que identidade nacional e nacionalismo são coisas diferentes.
Portugal construiu-se na diáspora e tem nela elemento crítico do seu sentido. Haja vontade e capacidade, entre os que por todos os continentes andamos e o coração territorial do nosso retângulo atlântico, se criarem laços novos, coroados pelas alegrias comuns que podemos compartir no sentido de sermos, na diversidade, Portugueses.