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A Justiça e o Direito, face à tentação do divisionismo – 1 – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 4, 2024

O que é a Justiça?

Dentro de nós, e apesar, de por vezes, o negarmos, sabemos o que é justo e o que é injusto. O que é equilibrado e o que não. O proporcional e o desproporcional. Todavia, mesmo esta ciência inata, dificilmente resiste ao egoísmo, à ganância, ao orgulho, à inveja, à ira, e a outras características, também presentes em nós.

Atualmente, a ignição de sentimentos negativos – e do animal dentro de nós – por parte de forças políticas, económicas e sociais, seja por razões de conquista de poder, de aumento dos lucros ou de visibilidade, é exponencial. Ateiam-se fogos, chamas que nos consomem por dentro e por fora. Há incêndios nos campos e nas cidades.

Muitos clamam por justiça, dando-lhe sentidos desencontrados, sinais de desunião. E o que é justo?

Diferentes pensadores e sistemas jurídicos consideram que é justo atribuir a cada um aquilo que é seu. Os demagogos, espalham, com a voz incendiária, que “justo” é garantir para nós mais que para os outros. Não é essa a ideia, de atribuir a cada um o que é seu.

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Num sistema ideal, cada pessoa saberia, autonomamente, o que é seu e o que é dos outros. Todavia, bem sabemos que não é assim, e que, frequentemente, existe conflituosidade em torno do que pertence a cada um – estejamos a falar da própria integridade, de bens imateriais como a honra e o bom nome ou de bens materiais como uma casa.

A Justiça, para obter harmonia face à conflituosidade, implica nomeação – identificar o que é meu e o que não é meu; implica atribuição – o que me cabe a mim e o que não me cabe e implica aceitação de regras que regulam as dinâmicas de interação. A nomeação e a atribuição podem corresponder a elementos constitutivos do ser – por exemplo, a minha vida, pertence-me, é justo que a possa proteger – ou atributos exteriores ao ser – a minha casa, o meu trabalho.

O que é constitutivo ou atribuído a alguém, são valores que variam de sociedade para sociedade, tal como quem nomeia e atribui. Numa sociedade onde o direito de propriedade não exista, o que é “meu”, difere do que possa ser considerado em outra que o reconheça. O próprio valor da vida humana tem tido várias calibrações, em diversas sociedades. Estas variações, levaram teóricos e sistemas de justiça a debater a existência – ou não – de “direitos naturais”, como elementos constitutivos do que é justo. O direito à vida, por exemplo, é considerado, nessas teses, como um direito natural, e que se sobrepõe ao poder de matar.

Sem aceitação, sem reconhecimento, as dinâmicas para cumprir o justo, não acontecem.

A Justiça, enquanto bem moral, para se efetivar, precisa de se constituir como sistema, a partir de valores, com regras e procedimentos.

A Justiça estabelece-se através do Direito (palavra que, por natureza, é antónimo de Torto). O Direito, corresponde ao conjunto organizado de normas e instrumentos reconhecidos institucionalmente, assistidos por poderes coercivos, e que regulam as dinâmicas de interação em determinada sociedade, através de um ordenamento jurídico, atribuindo a pessoas e grupos dadas prerrogativas e obrigações. O Direito pode ter diferentes fontes: as leis, os costumes, a jurisprudência, a doutrina. Na tradição ocidental, os sistemas jurídicos são inspirados no Direito Romano, no Jusnaturalismo, no Utilitarismo, e em diversas outras correntes de pensamento, ao longo dos últimos séculos.

Como se viu, o conceito de Justiça não é fácil de determinar. Ou, pelo menos, não há consenso sobre o significado de Justiça e sobre o que é o ato justo.

Creio que, para o nosso tempo, e no quadro de uma democracia, o modo como John Rawls coloca o problema da Justiça – que remete para as teorias redistributivas – se adequa ao que somos e ao que precisamos de fazer para ser mais justos. Nestes termos, vale a pena revisitar esta sua pergunta:

“Se se considerar a sociedade como um sistema justo (equilibrado) de cooperação entre cidadãos, olhados como livres e iguais, quais são os mais apropriados princípios de justiça para especificar direitos básicos e liberdades e para regular as desigualdades sociais e económicas, no quadro das perspetivas dos cidadãos, em ordem a uma vida realizada?” (Justice as Fairness – a Restatement, edição de 2001 da Harvard University Press).

Esta questão remete para a necessidade transformativa dos sistemas de Justiça face à realidade, para melhor servir as necessidades de equilíbrios sociais e económicos.

Por exemplo, o preço da habitação em Portugal subiu, significativamente, na última década. À luz das leis do mercado, e neste caso, da disponibilidade de compradores comprarem a determinado preço, os preços são “adequados” – há compradores disponíveis para pagar determinado preço. A existência desta disponibilidade – estrangeiros e portugueses com maior poder aquisitivo – criou um problema generalizado para fatias largas da população, por os seus rendimentos não acompanharem a subida dos preços. Os preços são adequados, em termos de mercado. Mas serão “justos”?

Poderá dizer-se que o aumento de preços gera incentivos para se construir mais habitação e que a construção de mais habitação fará baixar os preços.

Será assim? E o que acontece às famílias de menores rendimentos nos períodos (anos) que medeiam entre a situação presente de carestia e a hipotética situação futura de preços moderados?

Como equilibrar o valor da liberdade de mercado com o valor da proteção do bem a que corresponde o direito à habitação?

Encontrar soluções efetivas para estas e outras questões básicas, por mais que os demagogos gritem, não é fácil.

E percebe-se que parte do exercício de “vidas justas” vai para lá do sistema de Justiça, depende de uma ética social partilhada pelos cidadãos, de políticas públicas sistémicas que levam décadas a mostrar resultados, de um equilíbrio entre incentivos à criação de riqueza e mecanismos de redistribuição. São receitas que, nos países democráticos, todos conhecemos. Por estranho que pareça, nem sempre esse conhecimento se tem traduzido em práticas, contribuindo a falta de resultados para a propagação de movimentos extremistas, hoje propulsados pela fantástica força dos dispositivos digitais.

Resolver problemas pessoais e sociais estruturais é um elemento crítico da estabilidade e da confiança. Ter um sistema de Justiça “justo” e célere, faz parte desta perspetiva. Todavia, se é verdade que é importante proteger os direitos, é também fundamental cumprir os deveres. Ora parece que anda muita gente distraída sobre os seus deveres – deveres de verdade, de solidariedade, de cuidado, de respeito, de honestidade. Entrou-se no vale tudo, em que, amiúde, os maus exemplos chegam de políticos, homens de negócios, personalidades públicas, sem escrúpulos. E que Justiça se pode esperar numa sociedade assim?

Precisamos todos de respirar fundo, contar até dez, e, de forma implacável e ao mesmo tempo, escutando os outros, reencontrar a calma e o valor das instituições que garantem a coesão. Dividir para reinar pode dar poder. Mas destrói a sociedade. Haja prudência para evitar entrar no jogo dos que procuram, através da capitalização dos descontentamentos, e da divisão entre bons e maus, construir casas de intolerância e florestas de enganos, exigindo, ironicamente, justiça.

Não há sociedade justa sem respeito mútuo, solidariedade, criação de riqueza e redistribuição. Retire-se um destes elementos da equação e perceba-se o perigoso caminho que se trilha, para a casa da violência e da intolerância – libertando o pior que há em nós.

Somos, todos, composições de qualidades e defeitos.

É preciso ter a maior contenção e coragem, para não entrar no jogo do ódio, para o qual alguns nos querem levar, onde a Justiça deixa de ter lugar e a cegueira toma conta de nós.

Quando os incendiários constroem florestas de enganos, haja justos que criem campos de confiança.





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