A vida a passar como é costume, e a capacidade de apanhá-la, resultaram no primeiro Nobel da Literatura a chegar ao Canadá. Essa ideia do quotidiano, na obra de Munro, é não só importante como diz tudo. Ali a autora vê a vida de todos os dias, e escrutina-a, expondo-a, de forma a abrir em flor o cerne da vida para quem lê. Ao longo de décadas de escrita, não foi preciso inventar Sandokan nem dar a volta ao mundo em oitenta dias para ganhar o interesse dos leitores.
O cerne – a literatura – estava no quotidiano, no corriqueiro, e foi isso que elevou a autora: ter pegado em gente que não procurava a grandiosidade ou a redenção da arte e ter sido capaz de mostrar a beleza que há nessa banalidade, nessa existência devagar que há na vida de todos os dias, que não marca jornais, que não muda o mundo – mas que é, convém dizer, o mundo como é, cuja essência aparece depurada por uma prosa seca.
Assim, o conto resulta sempre quase em fórmula – tudo é conciso, tudo vai ao osso, tudo garante o baque como efeito. É que, ao partir do que parece quase nada, a autora lança os holofotes sobre isto de existir e ser pessoa – por um lado, as pessoas acomodam-se; por outro, não deixam de ser mais do que a soma das suas circunstâncias. Frequentemente, as reviravoltas permitem o enredo, já que o hábito das personagens esbarra com um desvio. É aqui que a autora voa, mostrando o humano perante a condição, rompendo dogmas, criando incertezas, inventando incoerências. O quotidiano aparece, assim, como tudo o que existe – em vez de um golo na final da Champions, há a dor da separação, a esperança ou o medo do começo, a nostalgia atada à perda, o conforto de um regresso. Tudo é tensão e beleza no mesmo movimento.
Frequentemente comparada a Tchekov, a autora fez o que fazem poucos: ganhou leitores em todo o mundo sem se ter metido no romance. Para trás, fica a sua obra contundente – essa que vai ao fundo das personagens e o expõe sem tréguas para quem lê. Em Portugal, convém acrescentar, a sua obra está publicada pela Relógio d’Água.