A argelina, a combater de vermelho, entrou com aquela fúria de quem quer arrancar uma cabeça à próxima pessoa que lhe passe à frente. Não, não era apenas mais um combate. Khelif não teria a mínima ideia do que se passava por exemplo na zona de imprensa, com uma enchente sem precedentes, mas foi ganhando noção do impacto que o seu caso foi ganhando. Ia lutar por si, pelo país, por uma medalha. Contra a húngara Anna Luca Homori, contra tudo, contra o mundo. Entrada determinada, um salto, água para cara, água para a nuca e estava cumprido o ritual antes de colocar a proteção na cabeça e entrar em ação contra uma atleta magiar que trazia a lição possível estudada mas nunca mostrou habilitações para dar a volta.
A argelina ganhou todos os combates e, se dúvidas existissem (que não existiam), a forma como as direitas ou os contra-ataques de esquerda iam ganhando prolongamento na reação do público quase que empurravam a caneta das notas dos juízes escalados para o combate. Imane Khelif ganhou os três assaltos. No final do primeiro, o treinador, Mohamed Al-Shawa, optou sobretudo por dar indicações à sua atleta. Após o segundo, que a meio teve um episódio em que Homori conseguiu colocar um gancho mas a adversária ficou a dizer que não com a cabeça, o técnico foi massajando as coxas e os gémeos da atleta enquanto já se fazia a festa fora de ringue. No terceiro, marcado pelos vários agarrões mútuos de quem está cansado, era tempo de festa.
Até de longe era possível ver que a cara da húngara tinha ficado “amassada” (e quando passou pela zona mista sem falar a quem tem os direitos mas a parar onde estava a imprensa escrita magiar para falar apenas na língua materna). Khelif, o treinador e a restante equipa faziam a festa. Aquele sinal sonoro que assinala os últimos dez segundos de cada assalto iniciou as comemorações por ter assegurado uma medalha entre uma vitória por unanimidade que só por uma vez teve 10-8 em vez de 10-9 entre juízes da Mongólia, do Canadá, do Sri Lanka, dos EUA e da Argentina, sendo que teve também um ponto de dedução durante o terceiro e último assalto. Também por respeito, só quando Anna Luca-Homori saiu do ringue é que Imane Khelif extravasou a alegria: enviou beijinhos, fingiu que estava a assinar o tapete, deu um salto com os seus traços de Ronaldo sem Siiiiiii, apontou com os indicadores para baixo como que a dizer “Eu estou aqui”. Depois, caiu-lhe a ficha. A autêntica guerreira desfazia-se em lágrimas perante todo o contexto.
Imane Khelif bursts into tears after her victory, advancing to semifinals even after millions of people say cruel, hateful things about her online. Her strength and resilience is unbelievable.
— Women Posting W’s (@womenpostingws) August 3, 2024
Os acessos dos atletas à zona mista depois dos combates não devem ser a coisa mais intuitiva do mundo. Já tínhamos visto logo no início um australiano aos abraços aos seus compatriotas numa zona onde só passava público, já tínhamos visto atletas a saírem do recinto por dois espaços diferentes, saímos com uma atleta a dar uma entrevista cá fora (neste caso já de banho tomado e equipada). Ali, eram as câmaras que faziam o caminho enquanto a equipa técnica protegia Khelif como se fosse uma daquelas estrelas com milhares de fãs que se querem chegar a ela para uma pergunta. Ainda houve mais um abraço emocionado a multiplicar as lágrimas a um responsável do boxe argelino, muita confusão. Nada com o que viria a seguir.
Mal dava para entrar na zona mista. O espaço destinado a quem tem os direitos (e pagou, bem, por isso) não teria menos de 200 jornalistas, todos com câmaras ou telefones na mão, em busca de uma reação da atleta. Ali, nem valia a pena arriscar fazer o que fosse, até porque Khelif ia falando apenas em árabe. Mais à frente, no espaço para imprensa escrita que podia ter menos pessoas mas não andaria assim tão longe do outro espaço, voltou a falar. Árabe, novamente. A cara era um misto de suor e lágrimas de quem dava o seu sangue para defender a honra. Quando acabou, todos ficaram a olhar uns para os outros: como era possível agora arranjar tradução? Uns minutos depois, pelos jornalistas ingleses, ela chegou e na frase que descrevia em quatro palavras tudo o que aconteceu antes e durante o combate: “Eu sou uma mulher”.