O embaixador António Martins da Cruz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Durão Barroso e assessor diplomático de Cavaco Silva, disse o que havia a dizer sobre o modo como a comunicação social tratou as eleições americanas: “Falharam as sondagens, falharam os comentadores e falharam os jornalistas, que não tiveram objectividade”.
O problema, sublinho, não é os jornalistas, os analistas e os comentadores serem contra ou a favor de Donald Trump, o problema é quererem transformar, nas suas reportagens e análises, o mundo naquilo que gostariam que fosse.
Mas o mundo não é o que gostaríamos que fosse. E ouvindo os enganados e enganadores explicarem, depois do embate com a realidade, porque é que se enganaram – admitindo, quando tanto, que talvez não tivessem dado “às pessoas” o que “as pessoas agora querem” (Jornalismo? Informação? Objectividade?) – é de crer que vão continuar enganados.
Aquilo a que estamos a assistir nos Estados Unidos é bem capaz de ser mais do que uma simples história de deploráveis manipulados pelas “redes sociais” e pelo “discurso de ódio” de políticos populistas. Talvez seja mesmo uma vaga de fundo.
Um dos argumentos perante o que foi uma votação inequívoca, é que “eles”, “os americanos” são bárbaros, básicos e incapazes de entender as luzes da modernidade e do progresso. É um argumento curioso que me lembra os primeiros anos 60, quando, na Administração Kennedy, Washington se mostrou hostil à presença portuguesa no então Ultramar: o tom geral da comunicação social oficial do Estado Novo era então insistir na boçalidade ou barbaridade dos americanos, no seu provincianismo de crianças grandes, perante nós, a velha Europa. Aparentemente, voltámos à mesma história – agora no rectângulo libertado pelos capitães de Abril e já sem Império.
Não são precisos polígrafos, só olhos, para ver que na América – e na Europa – “the times they are a’changing”. A dificuldade em vê-lo estará talvez no facto de os tempos e as vontades estarem agora a mudar de outra maneira; ou estarem a mudar, precisamente, contra a institucionalização das mudanças que Bob Dylan anunciava marginalmente em 1964.
A vaga que agora faz com que as águas extravasem das margens e inundem as seguranças instituídas é mais uma vaga de rejeição da mitologia e da ideologia da Esquerda que reinventou Marx nos anos 60, passando por Sade e Marcuse; uma ideologia que, fazendo “a longa marcha através das instituições” prescrita por Gramsci, passou a dominar culturalmente os Estados Unidos e a Europa. A última versão radical da Nova Esquerda foi a gota de água – com a elevação do imaginário ideológico a níveis de sofisticação e de absurdo estratosféricos, com a transformação da luta pela igualdade numa luta contra a realidade (biológica e social), com o “empoderamento” ou a instrumentalização de minorias essencializadas, com a entronização de uma superioridade moral indestronável e a licença para cancelar toda a expressão desviante e toda a contestação.
A luta contra todos estes absurdos usos e abusos não começou ontem nem se restringe à América, mas foi a América que agora a tornou flagrantemente visível. Donald Trump, que não estava ao lado deste povo, veio há dez anos ter com ele. E, contra todas as previsões, venceu.
A direita de que Trump é mediador perante os eleitores é complexa nas origens e nas causas. Tem, na sua História, uma linha de derrotas fundacionais – Nixon em 1960, Goldwater em 1964 – que trazem as vitórias de Nixon em 1968 e 1972. Eram tempos difíceis, entre a questão racial e a guerra do Vietname; os Democratas não estavam bem; Chicago, onde fizeram a convenção em 1968, estava caótica e em grande desordem. Nesse ano foram assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King. Nixon, com uma campanha de lei e ordem, foi eleito presidente.
Realista e pragmático, coadjuvado por Henry Kissinger, Nixon abriu as portas à China, aproveitou a lei dos direitos civis para criar uma burguesia e uma classe média negra e teve uma enorme vitória em 1972, varrendo 49 Estados. Depois, Watergate liquidou o presidente mais votado da História dos Estados Unidos, contribuindo, de passagem, para a sacralização do jornalismo como profissão e para dessacralização do cargo presidencial, acabando de vez com uma intocabilidade de que J. F. Kennedy ainda beneficiara.
A grande reviravolta – depois da presidência “franciscana” de Jimmy Carter, que trouxe a queda do Xá do Irão e criou o medo de que a União Soviética ganhasse a Guerra Fria – iria dar-se com Ronald Reagan. Com uma política articulada entre os valores tradicionais, religiosos e patrióticos, e a liberdade económica, Reagan chegava com a “revolução conservadora”. Na altura, todos, da esquerda comunista à esquerda moderada e à direita da esquerda, se indignaram: Como é que a América escolhera um “actor de segunda” para Presidente, um cowboy tão básico como os red-necks que o apoiavam, alguém que iria certamente pegar fogo ao mundo? Falavam então do mesmo Ronald Reagan que depois passaria a ser, para os mesmos, um senhor distinto e moderado, quando comparado com Trump – um “actor de reality shows”, um pistoleiro tão básico, selvagem e deplorável como os deploráveis que o apoiavam, alguém que se preparava para pegar fogo ao mundo.
A América ganhou a Guerra Fria e Bush-pai regulou a vitória, procurando não humilhar a Rússia pós-soviética e impedir a sua fragmentação em senhores da guerra com armas nucleares. Veio depois a Administração Clinton e a grande ilusão de estender a todo o globo a democracia americana. Bush-filho, eleito em 2000, ficou condicionado pelo 11 de Setembro. Na sua administração, Cheney e os neoconservadores exploraram a situação para impor, através de guerras diversas, uma pax americana que levou o caos ao Médio Oriente e se prolongou em intermináveis guerras mal-sucedidas na Líbia, no Iraque, na Síria, no Afeganistão. Obama seguiu, no tempo das “primaveras árabes”, com mais algumas tentativas falhadas de exportação democrática.
A primeira presidência Trump, ganha contra a representante acabada do “liberal-chic”, Hilary Clinton, saldou-se sem novas guerras, apesar da roda-viva de nomeações/demissões entre os conselheiros nacionais de segurança, a economia andou bem, mas não resistiu ao COVID. E Biden, o escolhido pela cúpula operacional democrática, acabou por ganhar.
Poderá o regresso de Donald Trump não passar de um revés da sorte, de um fenómeno extemporâneo gerado pelos erros do Partido Democrata e por uma conjuntura infeliz? Poderá a vitória de uma personalidade tão excessiva e controversa e a gerar tanta hostilidade, mesmo entre aqueles que apoiam o seu programa, não passar de um acaso? Ou será esta vitória contra os poderes da Grande Informação, contra grande parte do Dinheiro, contra a nova cultura radical, tolerada ou promovida institucionalmente por radicais e moderados, um sinal de que os tempos estão mesmo a mudar?
A verdade é que a vaga nacional e popular de que a vitória do Partido Republicano é sinal também já se faz sentir na Europa – e promete ganhar força com o exemplo americano.