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Ainda vivemos na divina tragédia de Father John Misty? – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 20, 2024

Só Joshua Michael Tillman saberá porque é que depois de sete anos a editar música enquanto J. Tiilman e inclusive assegurar um emprego estável, como baterista dos Fleet Foxes, que na altura eram o expoente máximo da indie-folk e muito queridos da imprensa, resolveu mandar tudo às malvas e criar uma personagem chamada Father John Misty em que deu azo ao seu hiper-romantismo e, paradoxalmente, a um cinismo e visão tão nihilista da vida que se torna difícil saber o que é personagem e o que é real.

Esta questão foi muito debatida entre 2015, quando Misty lançou o seu segundo disco, I Love You, Honeybear, e 2017, ano em que saiu o terceiro, Pure Comedy. Esse terá sido, porventura, o seu período de ouro, não apenas musicalmente como de impacto da personagem – quando tudo o que Tillman dizia ou fazia acabava a ser examinado nos media, enquanto os fãs (e em particular as fãs) se babavam pela música e por ele.

Situar com precisão o universo emocional da personagem Father John Misty não é – nunca foi – um exercício simples: a sua postura é a de um mestre de cerimónias de um circo, excessivo, teatral, grandiloquente – quase que implorando que o tomemos como alguém pouco confiável, o tipo de homem que sopra duas tretas ao ouvido de uma garota num bar, duas tretas que ela sabe ser mentira, mas nas quais quer acreditar durante uma noite, só para ver no que dá; em simultâneo Tillman tem perfeita consciência que se apresenta de forma excessiva e as suas letras revelam um olhar crítico sobre o mundo, seja o das relações amorosas, das substâncias que tomamos para aguentar com isto, da alienação ou mesmo o mundo da política (algo subjacente a algumas das suas canções).

[o vídeo de “I Guess Time Just Makes Fools of Us All”:]

Seria interessante se alguém tivesse feito uma sondagem à saída de um concerto de Father John Misty em 2017 e perguntasse às pessoas o que as levara lá. Como a sondagem não foi feita, isto não passa de um exercício de adivinhação, mas desconfio que:

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a) algumas das pessoas simplesmente gostam das canções e estão-se a borrifar para a personagem;

b) algumas das pessoas gostam das canções e sentem atração sexual pela personagem (Tillman basicamente inventou a figura do macho alfa no indie-rock, um meio dominado por machos beta, como Thurston Moore ou Stephen Malkmus, rapazes bonitinhos de classe média, mas que não levam as raparigas a atirar o soutien para o palco, ao contrário do que acontecia com Misty);

c) algumas pessoas estão conscientes de que Misty é uma personagem e que esta serve para Misty se proteger e dizer coisas sérias subrepticiamente;

d) um último grupo desconfia que a personagem dá a Misty caução para fingir que o que diz é mais importante do que o que realmente é.

Sendo que é bastante possível que por trás de todo aquele cinismo esteja realmente alguém que se preocupa com o mundo em que vivemos e alguém que carrega algum sofrimento – digamos que para os fãs de Father John Misty ele é, como no poema de Pessoa, um fingidor que finge ser dor a dor que deveras sente. Fingir é a única forma que tem de ser capaz de dizer a sua verdade.

A questão que se coloca é: e isto ainda interessa a alguém? Ainda há fãs de Father John Misty? Ainda alguém liga a homens do indie-rock? Nos últimos anos, o indie-rock tem sido sobretudo dominado por figuras femininas (Angel Olsen, Julia Jacklin, etc) e, enquanto género, tem diminuído de importância face ao domínio total da pop – Taylor Swift é omnipresente e novas figuras emergiram, como Charlie XCX, Sabrina Carpenter ou Chapelle Roan. Ainda alguém quer saber de Father John Misty?

[o vídeo de “She Cleans Up”:]

Em termos estritamente musicais deviam – e basta ouvir Mahashmashana, que além de ser o nome do novo disco (a editar esta sexta-feira, dia 22), é a canção que abre o mesmo, para isto ser uma certeza: canção grandiosa acaba em estado de graça, com a orquestra nos agudos e o saxofone a sofrer um colapso; She cleans up atira-se a um universo mais rockalhada, tem uma alta linha de órgão e de novo saxofones em agonia, enquanto Mental health arranca um dos mais bonitos refrões deste ano – e os versos anteriores não são nada de se deitar fora: “Your true self / Oh, they’d love if you could find it / Makes you much less hard work to predict / One of these label’s bound to fit”, e isto não é exatamente o que se espera de uma canção pop.

Mas convenhamos que Father John Misty nunca foi exatamente pop, mesmo tendo escrito canções para Beyoncé e Lady Gaga e mesmo enchendo os seus discos do que podemos considerar pastiches da música romântica dos anos 50 – o que não deixa de ser uma escolha curiosa de quem, no início da carreira, ainda enquanto J. Tillman, fazia discos tristes e depressivos, e que em pequeno tinha uma obsessão por Michael Bolton (este homem tem contradições que nunca mais acabam).

A obsessão por Bolton até é compreensível: os pais de Tillman eram muito religiosos e proibiam a presença de música não religiosa em casa – da primeira vez que ouviu Michael Bolton em casa de um amigo, Tillman ficou fascinado (até aí só ouvira música religiosa e ali estava alguém a dizer coisas concretas, sobre relações mas ainda assim concretas). O amigo gravou-lhe o disco numa cassete, mas Tillman tinha de esconder a cassete na escola, já que não a podia levar para casa.





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