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anatomia de um prodígio em forma de canção de amor – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 24, 2024

Em Ninguém, Ninguém há um par de linhas fortes que julgo ser o que toda a gente conhece e que equivalem ao refrão:

“Ninguém, ninguém/ Poderá mudar o mundo
Ninguém ninguém / É mais forte que o amor
Ninguém, ninguém, ninguém”

Não é exatamente claro o que se está a passar aqui: na primeira oração parece haver um apelo ao conservadorismo, ou uma resignação perante as forças-fortes que comandam o universo, algo estranho em 1978, quando acabávamos de sair de uma revolução; na segunda oração, a canção é conduzida a uma hagiografia romântica que estará no cerne do seu êxito: “Ninguém é mais forte que o amor”.

A canção parece dizer que não controlamos nada nesta vida ou, pelo menos, o que acontece lá fora no mundo; a nossa única esperança é o amor e mesmo o amor é mais forte que nós, pelo que apenas podemos aceitá-lo. As consequências ontológicas da frase são múltiplas: poderá uma pessoa amar duas ou três ou quatro pessoas? E se sim, aquela com que mantém uma relação tem de aceitar que o outro ame múltiplas pessoas? E se eu amar a Maria e não conseguir controlar o amor (porque o amor é mais forte que tudo, relembremos) e a Maria não me amar, não seria melhor eu controlar o meu amor (algo que aparentemente não consigo, se interpretar literalmente letra)?

[Marco Paulo na RTP na década de 80, com “Ninguém, Ninguém”:]

Seja como for, esta dimensão épico, hiper-romântica da vida como um absoluto definido exclusivamente pelo êxito amoroso que tudo redime e justifica é, de há muito, extremamente apelativa. O arranjo escolhido para a canção é apropriado: arranca num frenesim, antes de, pelos sete segundos, Marco Paulo distribuir sílabas à velocidade a que um cowboy disparava balas nos antigos westerns:

“Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada
Vão falando porque é fácil inventar, todos inventam por aí
Acertaram sem saber que uma paixão anda agora dentro do meu coração
Desta vez podem dizer seja o que for, mas isto agora é mesmo amor”

Tudo isto é cantado em menos de 30 segundos e, ali aos 25 e 29 segundos há uns coros (“A-aa, A-aa”) que são tão inesperados e kitsch que é impossível não sorrir; depois vem a ponte, com um suave toque de chanson, cordas elegantes e acabamentos existencialistas:

“De quem fui, de quem sou, onde vou?
Só eu sei mais ninguém sabe
Ninguém
Sim ou não, quem me dá a razão para tudo o que acontece?
Ninguém”

Como chegámos aqui? A canção começa por nos dizer que “Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada”, depois parece denunciar uma sociedade de bufos invejosos (“Vão falando porque é fácil inventar, todos inventam por aí“), mas conforta-nos porque “isto agora é mesmo amor”.





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