“Toda a Gente tem um Plano” é o título do novo romance de Bruno Vieira Amaral, que esta semana chegou às livrarias. A história é a de Calita, que depois de ter feito vida em Espanha enquanto DJ regressa a Portugal, procura um recomeço e enfrenta dilemas do passado, no mesmo bairro, com as mesmas memórias e renovadas tragédias. É o próprio autor (colaborador do Observador, no jornal e na rádio, na qual integra diariamente o painel das Manhãs 360) que nos apresenta a história — as origens, o processo, as exigências e dificuldades. O livro é publicado pela Quetzal:
“Esta história vem de um encontro fortuito com um amigo de infância que já não via há alguns anos e que tinha vivido uns anos em Espanha. Contou-me um pouco da história dele, houve alguns episódios que me interessaram, e a certa altura ele disse-me que eu devia escrever um livro sobre a vida dele. A ideia ficou, escrevi algumas crónicas e uns textos para me aproximar daquele mundo. Uns tempos depois voltei a encontrá-lo, contou-me mais coisas e foi como se uma personagem dos meus livros tivesse saído da ficção e tivesse ganhado vida. A partir daí, a minha intenção foi devolver aquela pessoa à ficção e, para isso, tive de me afastar da realidade e encontrar um caminho ficcional para contar a história.
Crescemos no mesmo bairro, eu conhecia a família dele, havia esse ponto em comum que facilitou o trabalho de imaginar certas situações que, não sendo inspiradas em acontecimentos reais, eram bastante plausíveis. Ele conhecera o meu primo João Jorge, protagonista do ‘Hoje Estarás Comigo no Paraíso‘ [romance publicado em 2017], e isso me ter levado a pensar que este livro não seria uma sequela, mas uma continuação alternativa do anterior, como se a vida do protagonista deste livro fosse a hipotética vida do João Jorge caso ele não tivesse morrido. Porque há vários pontos em comum nas histórias dos dois.
Não foi fácil afastar-me da realidade, porque as histórias eram muito fortes e apelativas. Construí o romance em torno de um episódio, que seria o clímax, e que acabei por não incluir porque entretanto gerou-se uma dinâmica própria que acabou por ditar o desfecho. O mais difícil foi a transição entre a primeira e a segunda parte. Já tinha escrito cerca de metade do romance, comecei a segunda parte e, de repente, deixei de o ‘ouvir’. Perdi o tom. E regressar não foi nada fácil, ao ponto de ter pensado que não valia a pena insistir. Mas voltei e encontrei talvez não o mesmo tom, mas algo complementar.
Por diversas razões estive a reler partes dos livros que publiquei [‘As Primeiras Coisas’, ‘Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa’, ‘Manobras de Guerrilha’, ‘Integrado Marginal’, entre outros] e encontrei repetições, temas, imagens e personagens, como se fizessem todos parte do mesmo livro (claro que aí a biografia ocupa um lugar diferente). E isso deixou-me satisfeito. Não vejo os contos e as crónicas como algo menor. Pelo contrário, acho que formam com os romances um todo, há uma continuidade. Porém, sei que o mercado e os leitores valorizam mais os romances. Nesse sentido, é quase como se ao longo destes sete anos em que não publiquei nenhum romance não tivesse escrito nada. No entanto, depois de terminar este livro, sinto-me motivado para escrever pelo menos mais dois neste registo, romances mais ou menos breves, centrados quase exclusivamente numa personagem.”
Às sete e pouco da manhã quase não há movimento na Avenida da Praia. Vê-se pouca gente e a gente que se vê são fantasmas a arrastar o peso da rotina, velhos a falar sozinhos, malucos das corridas e do bem-estar físico, donos madrugadores de cães impacientes, paralíticos, Punjeets da Uber e das lojas de capas para telemóveis, jeovás, ciganos, antigos com batentes da Guerra Colonial onde perderam pernas, braços e juízo (e ganharam uma reforma de merda e ódio aos turras), homicidas, cancerosos colostomizados, deprimidos sem dinheiro para aviar a receita de Xanax, cardíacos, filhos de uma grandessíssima puta, distribuidores de folhetos que podem ganhar até quinhentos euros por mês, náufragos dos estabelecimentos de diversão noturna que os vomitam de madrugada. É a hora ideal para passear o cão, apesar do frio que se faz sentir seja qual for a estação do ano. No verão, tem dias. Mas de manhãzinha cedo é quase sempre frio. E o frio, de algum modo, e a neblina que cobre a superfície da água, agravam a solidão dos fantasmas matinais que povoam a cabeça de Calita, os seus irmãos de sangue e terra. Têm ar de suicidas, de quem não tem a que se agarrar, de quem está no limite e se prepara para dar o último passo rumo a um abismo maior, mais profundo do que o braço de rio que se estende à sua frente. Para Calita seria simples. Bastava prender o cão a uma árvore, a um poste, ou soltá-lo para que ladrasse e fosse à procura de ajuda quando visse o dono executar o mergulho definitivo na água. Mas quem disse que Calita tem coragem para fazer uma merda dessas? Nunca na vida. Nem atirar-se de uma ponte ou de um viaduto, nem cortar os pulsos ou beber um copo de 605 Forte — ainda há 605 Forte? —, nem dar um tiro na têmpora ou enfiar a cabeça no forno a gás, nem rebentar com a casa, nem nada.
Mas supondo que o fazia, o corpo haveria de aparecer dias depois, a boiar na Praia do Rosarinho, intrigando um transeunte que, a princípio, não saberia distinguir o vulto na água, a massa negra e informe de uma paz mortal, ou então iria mais longe, arrastado pela corrente, até ao pontão de Alcochete, o ombro a embater num barquinho com nome de mulher — Aurora, Maria da Luz, Cláudia Sofia —, ou a maré caprichosa poderia levá-lo para sul, depositá-lo junto a limos, ervas, canas e lodo de onde seria resgatado por fuzileiros que ali treinam e se exercitam e se preparam para guerras adiadas. Quem sabe, ficaria a flutuar para sempre no Mar da Palha, devorado pela paisagem fluvial como as boias de sinalização que vira na primeira viagem de barco que se lembrava de fazer, numa manhã de domingo, a manhã mais terrível da sua vida, um cadáver coberto de algas, restos de flores, recordações dos que se lembrassem dele.
As crianças que então fizessem a primeira travessia do rio, como acontecera com ele há muitos anos, acenar-lhe-iam da janela e atirar-lhe-iam pedacinhos de pão como faziam aos patos do parque da cidade, julgando tratar-se de um animal marinho que só existe na imaginação excitável de crianças na primeira travessia para o outro lado do medo. Conheceria o mesmo destino de Amílcar, o amigo espancado numa madrugada de verão por um bando de brancos e atirado ao rio como uma saca de pedras e que, após dias sem que nada se soubesse dele, apareceu no sítio exato onde o tinham matado, encalhado nos postes do precário cais do Parque Zeca Afonso. Ele, que nessa noite fugiu para escapar à mesma sorte, reencontrar-se-ia com o amigo e pedir-lhe-ia perdão pela cobardia, por tê-lo abandonado à fúria de homens maus. Mas a vida é assim. Rapazes como Amílcar, lentos de raciocínio, vagarosos na fala, tinham azar e o azar é uma força poderosa. E, depois, rapazes maus.
O cão corria agora pela relva, uns cinquenta metros à frente, a focinhar na areia negra em volta dos troncos das árvores e, ao ver um velho sentado no muro de pedra, Calita pensou no que faria se o homem fizesse menção de se atirar à água. Se seria capaz de correr na sua direção e segurá-lo pela aba do blusão, se teria dentro de si as palavras que o pudessem salvar ou um silêncio tão poderoso que o comovesse, se haveria no livro da sua vida uma hora marcada para salvar a vida de alguém. Quando essa hora chegasse, talvez ele estivesse sob o efeito da ganza. Nesses momentos de paz, os únicos a que conseguia aceder no meio do caos e do tumulto que eram os seus dias, ficava mole, distante, sem paciência para conversas, sem energia para convencer alguém do que quer que fosse, sem força até para ir atrás do cão que se afastara tanto, quase a chegar ao Clube Naval, pouco mais do que um ponto na distância, à sua maneira um corpo flutuante a deslocar-se para longe do dono, uma memória de outros dias levada pela maré do tempo para um lugar que a imaginação de Calita, entorpecido pela droga, já não alcançava.
O cão, a única companhia que lhe restava, sairia da sua vida como todos os outros, uns mortos, outros desaparecidos, uns que ele abandonara, outros que o tinham abandonado a ele, gente que se evaporara numa esquina, numa escolha, à saída de uma discoteca, à porta de uma casa onde já não podia entrar, numa recordação que todos os dias se desfazia mais um pouco. A ideia de se tornar um herói, de salvar alguém e ser alvo de homenagens, de receber elogios e cumprimentos de pessoas que o ignoravam, que nunca o viram como um homem, era atraente, embora não fosse o mesmo agarrar a este mundo alguém que queria partir ou alguém que queria ficar. E se se salvasse a si mesmo, se no último segundo recusasse dar o derradeiro passo, ninguém saberia do seu heroísmo porque não é herói aquele que se salva a si mesmo do abismo que o chama.
O cão tinha dado a volta e parecia a Calita que ele agora corria na sua direção. Observou com atenção amorosa o mundo cinzento que era de novo o seu: estilhaços de garrafas de cerveja no campo de basquete, restos de alegria, triciclos destruídos, papéis amarrotados com promessas de salvação, com promessas de promoções que ele distribuíra, e como isso se comparava tristemente ao fulgor das noites, das bolas de luzes e aos intermináveis céus artificiais que rebrilhavam nos tetos das discotecas.
Soube que se visse alguém prestes a lançar-se nas águas turvas do rio, ainda que não estivesse ganzado, nem que o desespero tivesse embotado o seu discernimento, nada faria para o salvar. Desviaria o olhar e seguiria o seu caminho. Talvez lhe desse um empurrão ou lhe gritasse, de longe, «atira-te, nada de mal te poderá acontecer», embora preferisse a indiferença porque a conhecia melhor que ninguém. Não era a indiferença que matava. Era o excesso de preocupação. E com o cão de volta, a farejar-lhe as mãos, feliz e estúpido, Calita sabia que a preocupação não salvava ninguém. Quem tinha de regressar, regressava. Quanto aos outros, nada havia a fazer. A preocupação não salvava ninguém.