Não tem graça nenhuma ter um irmão. Passar-se de primeira a segunda figura. Ou de filho único a mais crescido. Deixar-se de ter a mãe, o pai e os avós só para nós e passar a ter de dividir o que era bom por mais alguém. Ter-se de agradecer as prendas que o mano, quando nasce, acaba por trazer enquanto “rouba” 70 ou 80% da atenção da mãe. Ver as pessoas passar, num corrupio, lá por casa e a pararem sempre nos comentários adocicados em relação ao novo bebé. Perder-se toda a legitimidade para ter manhas e manias porque nos recordam que temos outras responsabilidades e temos (sempre!) de dar o exemplo porque somos mais velhos. Sentir-se que a mãe parece estar sempre entre o terno e o comprometido em relação a nós, como se sentisse culpada por aquele pingente ter aparecido lá em casa. E ter-se de reclamar, de novo, pela chucha e pela fralda como se só dessa forma, semelhante a um apelo desengonçado e desesperado, se ganhasse direito a ter mais atenção uma outra vez. Depois, com o tempo, um irmão é uma mais-valia. E a cumplicidade que ele nos traz transcende quase tudo o que nos “tirou”.
Por isso mesmo, não é um drama ter-se vários filhos. Mas é difícil sermos iguais para todos eles, ao mesmo tempo. Porque a experiência nos torna diferentes. Porque eles estão longe de ser milimetricamente iguais. Porque a forma como cada um fala connosco é muito distinta. E porque nem sempre reconhecemos aquilo que eles esperam de nós, nem nos identificamos a todos os pormenores de um e do outro, com a mesma desenvoltura e segurança.
E, depois, à medida que eles crescem, um corre risco de ser, oficialmente, o frágil. O outro, o desembaraçado. Um brilha na escola. O outro é “só” um aluno “normal”. Um é discreto e metido consigo. O outro, aproxima-se dos desempenhos dum relações públicas. Um acaba por ser certinho. O outro, provoca e desafia. Um orgulha-nos ou envaidece-nos. O outro, preocupa ou desilude. Um parece assumir-se como a nossa melhor versão. O outro, copia dos defeitos do outro dos pais. Um sintoniza-se, sobretudo, connosco. Para o outro parecemos vir, sobretudo, em segundo lugar. E são tantos, mas tantos, os aspectos em que os dois se distinguem que, por mais que uma pessoa queira ser igual naquilo que dá e em tudo o exige, igual naquilo que espera ou igual na forma como se sente cuidada e acarinhada, as coisas são, quase desde sempre, muito diferentes. E essas diferenças tendem a acentuar-se pela vida fora.
Por tudo isto, mal seria que os irmãos, para lá de toda a cumplicidade de que são capazes, não cultivassem os ciúmes entre si. E em função daquilo que um sempre consegue a mais que o outro, mal seria que a inveja fosse um território estranho ao que se passa entre aos irmãos. É claro que quanto mais eles parecem o gato e o rato; mais “pegam” um com o outro e rivalizam; mais embirram e mais bulham. E se tudo isso se dá sob a supervisão justa dos pais, mais aprendem a ser irmãos. Mas é, também, claro que nisto tudo os pais têm um papel precioso como entidade reguladora. No sentido de corrigirem, a partir das tensões e dos conflitos, aquilo que os vai separando os irmãos de forma mais continuada ou mais acentuada.
É verdade que é dificílimo que os pais amem cada filho como se fosse o único. Por mais que o tentem fazer. É verdade que nem todos os filhos conseguem ser, igualmente, bons filhos. É verdade que, consoante os períodos da vida dos pais e dos filhos, as alianças entre eles vão oscilando. É verdade que, por mais que o tentem fazer com todas as suas forças, os pais não conseguem gostar de todos os filhos da mesma forma, ao mesmo tempo. É verdade que confidenciam melhor com um deles, se irritam com mais mais exuberância com o outro, etc. E é verdade que, demagogia à parte (quando um deles acha que o outro é “o filhinho querido” do papá ou da mamã), todos nós temos os nossos “fraquinhos” e gostamos mais de um filho que do outro. Às vezes, de forma passageira. Às vezes, dum modo mais instalado e “definitivo”. E é, finalmente, verdade, que, sendo tudo bem isto bem gerido, nada é facturante o suficiente a ponto dos filhos deixarem de ter entre si uma relação cúmplice e fraterna. Por mais que, dependendo das suas idades, eles amuem, e embirrem, e bulhem, e façam questão de marcar as diferenças uns em relação aos outros. Sendo certo que os pais não podem nunca baixar os braços e deixar de alinhar a relação entre os seus filhos. Mesmo que eles cresçam e se afastem geograficamente uns dos outros. Ou que as pessoas com quem venham a namorar contribuam para trazer distância onde, dantes, ela não existia.
É difícil termos filhos. E difícil termos irmãos e sermos irmãos. E a prova disso é o modo como nós exigimos aos nossos filhos que sejam amigos e que tenham entre si a relação que, muitas vezes, não conseguimos ter com os nossos irmãos. Ou quase fazemos questão de não ter. Às vezes, porque os nossos melindres não são acompanhados pela humildade devida. Às vezes, porque acabamos por ter uma perspectiva muito de vítimas ou demasiado narcísica em relação aquilo que não conseguimos ser nem fomos capazes de conquistar. Às vezes, porque os nossos pais, à media que ficam mais velhos, vão-se aproximando mais de um dos filhos e quase se esquecem que todos os filhos são sempre muito mais pequeninos em relação a tudo aquilo que esperam dos pais do que a sua idade faria crer. E que, por isso mesmo, acabamos a “responsabilizar” um irmão por tudo aquilo que fomos perdendo dos nossos pais. Porque nos “roubou” os pais. Porque nos “roubou” protagonismo. Porque nos “roubou” confiança. Porque nos “roubou” mais do que nos deu. Por mais que, no meio disso tudo, tenhamos adoptado uma atitude passiva, ou silenciosa. Ou, em relação às nossas dores de filhos e de irmãos, fomos fazendo reparos, unicamente, por meias palavras.
Mas, hoje, gostava de conversar convosco acerca do bullying entre os irmãos. Quer aquele que se vai fazendo tardiamente. Como o que se dá em suaves prestações. Quer aquele que se faz de forma mais declarada. Através da forma como se desqualifica, dum jeito ácido, um irmão. Ou se achincalham algumas das suas características físicas. Ou os resultados escolares que não tem. Ou as suas dificuldades. Ou os seus insucessos. Etc. Muitas vezes, diante duma distracção incompreensível dos pais. Muitas vezes, porque protegem quem vitimiza porque tem esta ou aquela dificuldade; ou passou por isto ou por aquilo. Muitas vezes, diante da forma como se declaram impotentes no modo como era suposto que interviessem na relação entre os irmãos. Por vezes, porque se vitimizam. Por mais que estas fraturas entre os filhos os matem, por dentro, devagarinho.
A verdade é que o bullying entre os irmãos acaba por trazer a quem vitimiza a ilusão de ser vitorioso que, mais tarde ou mais cedo, irá ceder em derrocada, com custos imensos. E a quem é vitima uma auto-estima fragilíssima, que se vai manifestando nas relações familiares, na vida social, no trabalho, nos sonhos, ou nas conquistas que se realizam.
O bullying entre os irmãos não se declara só quando se trata de dividirem a herança dos pais. Quando aí se manifesta é porque ele se foi contendo. E foi carcomindo a relação dos irmãos com silêncios e omissões.
Seja como for, o bullying entre os irmãos é uma violência por delegação dos filhos em relação aos pais. E uma forma de os ir matando de dor, diante da complacência de todos. E talvez por isso os irmãos desavindos, ou que cultivam o bullying (seja de forma aberta ou de modo sinuoso entre si), nunca o devessem perder de vista. E, já agora, era bom que se recordassem que, sempre que o fazem, se inabilitam, pelos exemplos que dão, para exigirem aos seus filhos que sejam bons filhos e bons irmãos. E que nunca é demais que se recordem dum ditado estafado: “Filho és, pais serás. Assim como fizeres, assim acharás”.