Estou no Butchers do Saldanha, a segunda morada de um restaurante que ajudou a democratizar a carne maturada em Lisboa. Diante de mim, um Butcher Steak. Terá umas 220 gramas e garantem-me que maturou por 35 dias. É das melhores peças de carne que trinquei nos últimos tempos. Antes de me fazer ao bife, porém, sinto que precisamos ter uma conversa mais ou menos séria. Vamos a isso.
O Butchers promete “carne maturada e desavergonhada”. A princípio, soa-me a anúncio de Milf marota nas centrais do Correio da Manhã. Ainda corro a ementa em busca de outras sugestões lascivas, mas a única coisa que encontro entre as carnes é uma entrada de “Camarão Quer Alho”. Sorrio do título, num assomo de nostalgia pelo humor labrego da minha adolescência, e pergunto-me o que será feito do Pequeno Saúl. Por momentos, sonho com todo um menu feito de piadas sobre pitos, chistes com enchidos e chalaças de fruta (se queres dançar chama o António; se queres abardinar, better call Saúl). Mas depressa regresso à frase inicial e fico a matutar no que me quer dizer aquela palavra “desavergonhada”.
Talvez comer um bife seja hoje uma pouca vergonha. Não me sobram dúvidas de que a produção intensiva de bovinos é um problema real e um sério acelerador de alterações climáticas. Além disso, tenho consciência de que as minhas escolhas têm peso. Uma pesquisa breve diz-me que produzir um kg de bovino consome 15.415 litros de água e 70 kg de gases; que os ruminantes soltam 300 litros de metano por dia em arrotos e flatos (tremenda falta de urbanidade, estas bestas do campo); e que as vacas, em rigor, se afogam pelo cu (fait diver sem relevância para o caso, mas absolutamente factual).
A minha questão é outra: sinto que o peso das minhas escolhas anda a ser medido com balanças de precisão manhosa. Todos estes números são uma simplificação da realidade e têm o propósito pedagógico de ilustrar a ordem de grandeza do problema. Aprecio isso. Só que insistem em vender-se com um rigor científico que não têm e acabam a validar disparates.
Pergunto se comer um naco de barrosã criado em pasto significa o mesmo que enfardar uma picanha de um charolês brasileiro alimentado a soja, que custou meia piscina olímpica, um hectare de Amazónia e ainda teve de fazer a viagem, o que inflaciona a pegada carbónica (além de que as vacas não foram feitas para voar e quem já foi atingido por caca de passarinho dá graças aos céus por isso).
Não estou com isto a minimizar a pegada do meu bife. Pelo contrário, o Butchers gaba-se de servir carne das melhores origens, do Uruguai ao Japão, e o mais certo é este animal ter sido abatido uns fusos horários adiante. Sublinho apenas que a ética do consumo anda a ser trocada por consumismo moralista. Por um lado, a consciência ecológica confunde-se com compaixão bajouja pelos bichinhos — coisa que um rústico como eu, que sempre olhou para o Bambi como um cabrito, tem dificuldade em perceber. Por outro, confunde-se sustentabilidade ambiental com ficções pouco científicas sobre alimentação saudável, que dizem da carne vermelha o que Maomé não disse do toucinho.
Quando o PAN propôs que São Bento deixasse de comer carne à segunda-feira, arreganhei os caninos a rir. Imaginei os deputados da nação a salvarem o planeta com abacates do Peru, a empanturrarem-se de saúde com tofu à lagareiro e a reduzirem as emissões de gases com lentilhas. Dir-me-ão que é apenas uma iniciativa simbólica que dá o exemplo e que eu estou a ser palerma; contraponho que é uma iniciativa palerma e eu estou apenas a dar exemplos simbólicos.
A virtude estará algures no meio, o que não é novidade. Mas mesmo admitindo que a vazia está cheia de culpa e que a maminha vai ser a nossa perdição, tenho a dizer que este Butchers Steak está um mimo. Dois dedos de altura, carne sem gordura e ainda assim suculenta, a assadura num degradé perfeito entre o tostado da reação Maillard por fora e o ponto quase cru ao centro. Em duas visitas a este Butchers, mais outra à casa original no Parque das Nações, a bitola pouco fugiu disso.
Sinalizo a picanha que não encheu as medidas — a carne saborosa e tenra, mas a gordura um pouco nervosa; simpatizo com um hambúrguer da casa — 180gr de chicha, cheddar, cebola roxa, redução vinho do Porto, ovo a cavalo; e aclamo o entrecôte de 400gr — marmoreado, índice perfeito de gordura, o mesmo rigor na assadura, talvez a melhor peça que provei no catálogo das maturadas.
A carta é enxuta e a base é carne grelhada, sem mais, sempre com o sal à parte. Em regra, acompanham umas ótimas batatas fritas caseiras e umas tigelinhas de salada triste, como é tradição nacional. Mas os carnívoros precisam de amigos e a oferta abraça outras sensibilidades com ceviche de atum, salada de camarão ou linguini com trufa e parmesão (nada disso se provou).
Há ainda um risotto de cogumelos meloso e simpático, que é servido como prato, mas também monta guarnição a umas bochechas de porco cozinhadas a baixa temperatura, firmes no prato mas a desfazer na boca, que sempre minimizam o estrago da refeição (o porco é ibérico, custa menos água e, apesar do nome, solta menos gases).
As duas casas têm espaços amplos e mesas desafogadas e conseguem a proeza de um ambiente leve e sem odores a grelha ou hormonas de ruminante. O serviço é tranquilo e informado, a carta de vinhos é generosa e justa. Tem uns bons croquetes de entrada (o recheio estilo mousse) e uma boa mousse de chocolate (com aquela firmeza que dá para encher croquetes).
Antes de sair, volto à vaca fria. Contas por alto, uma refeição completa com 400 gr proteína de alta qualidade fica-me a 25€ por cabeça, sete mil litros de água e 28 kg de gases com efeito de estufa. E isto sem contar com a mousse, que o chocolate está um balúrdio ao quilo: precisamente 17.196 litros de água, se querem saber.
Hei-de voltar, mas a pé. Sempre ajuda a desmoer a barriga e a consciência.
Rua Tomás Ribeiro 38, 1050-230 Lisboa. Telefone: 21 314 7655. Aberto todos os dias, das 12h às 15h e das 19h às 23h.
Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.