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Caricaturas não são boa análise – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Set 20, 2024

Do outro lado do Atlântico, a corrida à Casa Branca continua extremamente renhida. A cobertura mediática por lá e por cá resume, frequentemente, o estado da política norte-americana a um punhado de chavões. Estes chavões – polarização, extremismo ideológico, sectarismo partidário – tornam a leitura que fazemos do mundo simples, mas podem também degenerar em caricaturas. Temo que estejamos num ponto com demasiadas caricaturas. Tentando enriquecer o simplismo excessivo e as caricaturas dominantes, dou aqui alguns exemplos de como a realidade é, muitas vezes, mais complexa do que esses chavões aprendidos.

1. “O sectarismo partidário torna os eleitores cegos aos factos e às políticas públicas.”

É fácil cedermos à ideia de que o eleitorado está dividido em dois grupos: progressistas de esquerda para um lado, conservadores de direita para o outro. Os primeiros votam sempre nos candidatos do partido Democrata e os segundos votam sempre nos candidatos do partido Republicano. A ser totalmente verdade, esta observação traria consigo uma série de consequências perniciosas, sendo a mais grave a destruição da capacidade de uma democracia garantir accountability dos seus líderes. Porquê? Se os eleitores votarem sempre da mesma forma, os políticos têm carta branca para fazer o que quiserem sem sofrer qualquer consequência. Se assim for, podem ser corruptos, desenhar políticas públicas que tornam a vida das populações pior, gerir uma economia em decadência, e até subverter as regras do jogo democrático. Ou, nas palavras de Donald Trump, um candidato poderia “matar alguém na Quinta Avenida sem perder um voto”. Os eleitores do seu partido votariam nele e seriam cegos em relação aos seus defeitos.

Porém, não bem é isto que os dados revelam. Sendo verdade que uma percentagem dos eleitores norte-americanos são altamente partidários, e votam sempre da mesma forma independentemente da qualidade do candidato do seu próprio partido, uma percentagem importante flutua e muda o seu comportamento quando o candidato é fraco ou a sua governação gerou maus resultados. Para além disso, uma fatia muito considerável do eleitorado identifica-se como sendo independente (entre 20 a 30%), isto é, não se identifica com nenhum dos dois partidos. Estes eleitores, naturalmente, também votam, e o seu voto também flutua entre partidos.

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Nos Estados Unidos, a investigação mais recente mostra que os eleitores pesam simultaneamente o partido político do seu representante com o modo como este votou em legislação importante. Para além disso, sabemos que os eleitores respondem muito claramente às condições económicas locais. No caso norte-americano, os dados mais recentes mostram que o partido do presidente é claramente castigado, em todos os níveis de governo, consoante a performance da economia local, onde o eleitor vive.

Se todo o eleitorado fosse inamovível, esta resposta a maus resultados económicos, por exemplo, não poderia existir. Nesta eleição, a economia é, sem dúvida, o calcanhar de Aquiles de Kamala Harris. Harris nunca foi uma política particularmente versada ou credível pela sua competência em questões económicas, tendo focado a sua carreira noutras questões como a justiça, o crime, ou o aborto. Acresce que o mandato de Joe Biden é avaliado por grande parte do eleitorado como tendo sido mau do ponto de vista económico, e Harris é, inevitavelmente, associada a esta governação. Em particular, os eleitores não gostam de inflação e já não estavam habituados a ela. Um artigo recente de Stefanie Stantcheva explica-nos o porquê desta aversão tão intensa dos eleitores à inflação. Primeiro, grande parte das pessoas percepciona que o aumento do custo de vida (durante o mandato de Biden a inflação cumulativa nos EUA foi de cerca de 20%) não foi acompanhado por um aumento dos rendimentos proporcional, resultando em menos poder de compra e dificuldades financeiras em muitas famílias. Segundo, os eleitores não gostam de inflação porque não atribuem os aumentos salariais que recebem em períodos inflacionistas como resultado da inflação, mas sim como resultado de progressões merecidas na carreira. Terceiro, os eleitores não associam a inflação aos outros indicadores que geralmente aparecem em paralelo com esta, como elevado emprego ou actividade económica. Quarto, muitos eleitores percepcionam que há desigualdades geradas pela inflação e que outros grupos na sociedade são menos prejudicados (ou até beneficiados) com a mesma do que eles.

Assim, não é de estranhar que Harris e a campanha Democrata tente que a campanha se foque noutros assuntos que não a economia. Também não é de estranhar que a melhor parte do debate para Donald Trump tenha sido aquela sobre a economia. Muitos eleitores, merecida ou injustamente, associam o mandato de Trump com um período de crescimento económico, baixa inflação e redução de impostos. Este é, sem dúvida, um dos factores pelos quais a eleição está tão renhida, apesar das elevadas taxas de rejeição que o candidato Donald Trump tem no eleitorado. E, se o eleitorado ainda parece ser tão afectado por resultados económicos e outros resultados, é também porque a polarização não explica todo o comportamento eleitoral.

2. “O sectarismo partidário torna os eleitores irracionais.”

Será que eleitores partidários, aparentemente cegos aos tais resultados e qualidades dos candidatos, serão mesmo irracionais? É um rótulo frequentemente utilizado e que me arrepia particularmente. Quando um eleitor partidário (geralmente de um partido que não o nosso) vota num candidato que nos parece manifestamente cheios de defeitos graves, somos talvez tentados a apelidá-lo de irracional, ignorante ou mesmo mentalmente incapaz. Parece-me, porém, ser pouco reconhecido que muitos eleitores votam num candidato apesar de reconhecerem plenamente os seus defeitos. Estes eleitores não são cegos ou irracionais, simplesmente acreditam que o candidato imperfeito lhes trará algo que os próprios valorizam. É por isso mesmo que muitos conservadores mais tradicionais votaram em Trump apesar dos seus defeitos, como uma carreira e vida privada cheia de episódios pouco Cristãos: Trump foi eficaz a nomear três juízes conservadores para o Supremo Tribunal e a baixar os impostos e, para muita gente, isso tem mais valor que qualquer expressão rude ou lunática que Trump diga.

De forma mais geral, parece cada vez mais claro que na base da tal polarização identificada entre uma porção do eleitorado não está uma identidade ou uma lealdade intensa e quase cega a um partido ou ao “nosso grupo”, mas sim crenças e preferências políticas profundas. A psicologia social ultra-simplificada do “nós-contra-eles” não parece explicar tudo, apesar de muitos livros de aeroporto sexy escritos à sua custa.

Nem todos são como nós e acreditam no mesmo que nós e, por isso, devemos ter muito cuidado antes de apelidar o comportamento de alguns eleitores (que nunca somos nós!) de irracional ou ignorante. Se para explicarmos alguma coisa precisamos de assumir que um grupo grande de eleitores é estúpido mas o nosso grupo não é, então será melhor tentarmos outra explicação. Não me parece ser possível argumentar que grandes massas da população permaneçam iludidas ou ludibriadas por muito tempo. Perceber as motivações dos diferentes tipos de eleitores é, portanto, mais essencial e mais difícil que simplesmente apelidá-los de burros ou enfeitiçados por uma mensagem de WhatsApp ou um vídeo no Youtube.

3. “A polarização entre Democratas e Republicanos é tão profunda que infecta toda a sociedade e comportamento dos cidadãos.”

Outra narrativa influente em torno do fenómeno da polarização é a de que esta divisão ideológica profunda, a que aludi nos últimos parágrafos, se aplica a todo o eleitorado e que gera ódios e animosidades profundas em toda a sociedade. Isto é, que a polarização já não é apenas ideológica, mas também afectiva e emocional. Já referi acima que tal animosidade é, na maioria dos casos, motivada por valores e crenças políticas profundas e não meramente tribal. Mas, pior ainda, muitos afirmam que esta polarização emocional está espalhada por toda a população. Ora, há alguns dados contrários que recebem pouca atenção mediática mas que são fundamentais para uma análise mais sóbria da política contemporânea norte-americana.

Inúmeros estudos mostram que, nos Estados Unidos, a polarização entre as elites é significativamente mais elevada que a polarização entre as massas e na população em geral. Isto é, as elites – de ambos os lados – estão mais divididas e têm maior probabilidade de ter opiniões políticas extremistas que o eleitorado geral. Esta polarização começou e é mais prevalente no Congresso, nos partidos políticos, nos media e noutras esferas culturais. Como observamos frequentemente as elites políticas e culturais (nos jornais, em discursos ou eventos políticos, na televisão, na Internet) ficamos com a sensação – errada – que todo o eleitorado pensa como elas. Isto é, ficamos com a sensação que todos aqueles que votam no partido Republicano pensam como Tucker Carlson ou JD Vance, e que todos aqueles que votam no partido Democrata pensam como Anderson Cooper ou Alexandria Ocasio-Cortez.

No entanto, os dados revelam que grande parte do eleitorado norte-americano tem posições políticas relativamente moderadas ou que tem posições políticas “não-alinhadas” no eixo tradicional esquerda-direita. E não convém mesmo esquecer estes eleitores mais moderados e diferentes das elites partidárias e culturais que todos os dias lemos e ouvimos. Afinal de contas, está também demonstrado que são estes eleitores que mais contribuem para decidir eleições. Essa a maior ironia: num contexto que todos classificam como altamente polarizado e dividido, são os centristas e os independentes que mais decidem eleições.

Finalmente, é também claro que a polarização ideológica e o extremismo são muito mais um fenómeno entre o grupo de eleitores altamente politizados do que um fenómeno generalizado. Mas este grupo altamente politizado – como eu e o leitor – não corresponde à maioria do eleitorado. E é essa outra divisão – para além da divisão tradicional entre Democratas e Republicanos – que temos de ter em conta quando pensamos no eleitorado como um todo. Para uma maioria do eleitorado – que não liga à política ou dedica muito menos tempo a ela – a polarização entre partidos e a política não é algo central nas suas vidas.

Não basta resumirmos a análise política do que se passa do outro lado do Atlântico a caricaturas de grandes blocos sociais e geográficos monolíticos nem a uma versão demasiado simplista do que significa a polarização na sociedade norte-americana.





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