O recurso a intermediários pelo Banco Espírito Santo (BES) na comercialização de obrigações em 2014 e a colocação de mais-valias fora do grupo foi algo que uma das auditoras da KPMG que acompanhava a instituição nunca viu na carreira.
Falando como testemunha pelo segundo dia seguido no julgamento do processo BES/GES, Inês Viegas Neves foi questionada pelo Ministério Público (MP) sobre a forma como foram conduzidas a emissão e comercialização de obrigações no seio do Grupo Espírito Santo em 2014 e se o método seguido era comum a outras instituições financeiras, ao que a revisora oficial de contas admitiu que não.
“Eu nunca tinha visto. Já vi muitos exercícios, mas não me lembro de ver uma operação deste género. Sobretudo neste caso em que é retido fora da entidade emitente [das obrigações] um valor tão significativo”, afirmou Inês Viegas Neves, acrescentando que também já “havia um risco reputacional e fiduciário” sobre o BES.
Já durante a sessão da manhã realizada no Juízo Central Criminal de Lisboa, Inês Viegas Neves tinha descrito a operação em torno das obrigações, descrevendo que as obrigações emitidas pelo BES eram colocadas em mercado primário pelo BES Vida e por outra entidade e depois compradas pelo ES Bank Panamá, que as revendia aos clientes do BES por cerca do triplo do valor.
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Esta situação gerou mais-valias que não estavam registadas nas contas do ES Bank Panamá, com a então auditora da KPMG a assumir que “com estas operações se podia ter gerado num intermediário fora do grupo uma mais-valia de 700 milhões de euros” (ME).
Durante a tarde, Inês Viegas Neves abordou ainda as provisões que foram feitas por conta de clientes venezuelanos do GES e que, por via de cartas que tinham sido emitidas, tinham uma natureza vinculativa sobre o BES, ou seja, se a sociedade ESI (holding para as áreas financeira e não financeira) não pagasse, o BES pagaria.
Segundo o documento exibido na audiência, o relatório do final de 2014 indicava 1.126 ME de provisão, incluindo provisões para estes clientes venezuelanos de 314 ME. Porém, este valor seria progressivamente revisto nas contas, ao subir para 385 ME no final de 2015 e para 422,9 ME no término do ano seguinte.
“Os senhores da Venezuela eram considerados clientes institucionais e não caíam no âmbito das provisões. Só caíram nesse âmbito graças a estas cartas… revelou um compromisso de pagamento perante estes senhores. [Favorecidos?] Pelo menos tinham este instrumento nas mãos deles”, salientou.
Inês Viegas Neves, que esteve mais de oito horas a responder às questões do MP ao longo de dia e meio, acabou durante a tarde por começar a ser inquirida pelos assistentes. Ao ser questionada pelo assistente BES em Liquidação, negou que lhe tivesse alguma vez sido transmitido pelo commissaire aux comptes Francisco Machado da Cruz que tinha um documento assinado por Ricardo Salgado a aprovar lançamentos nas contas do grupo.
Negou também ter conhecimento na altura dos factos da reunião realizada em 28 de março de 2014 do contabilista do GES com uma sociedade de advogados do Luxemburgo na qual Machado da Cruz teria assumido que não havia “um erro com as melhores intenções” nas contas da ESI, mas sim uma falsificação.
Inês Viegas Neves vai continuar a ser ouvida na quarta-feira, agora para responder às defesas dos arguidos, tendo sido desmarcadas as audições das testemunhas previstas para este dia, nomeadamente a inquirição do ex-primeiro-ministro Passos Coelho, que liderava o Governo durante o colapso do BES em 2014.
Além do antigo presidente do BES, Ricardo Salgado, estão também em julgamento outros 17 arguidos, nomeadamente Amílcar Morais Pires, Manuel Espírito Santo Silva, Isabel Almeida, Machado da Cruz, António Soares, Paulo Ferreira, Pedro Almeida Costa, Cláudia Boal Faria, Nuno Escudeiro, João Martins Pereira, Etienne Cadosch, Michel Creton, Pedro Serra e Pedro Pinto, bem como as sociedades Rio Forte Investments, Espírito Santo Irmãos, SGPS e Eurofin.