Carta aberta
Cara(o) líder parlamentar
As ações pueris de deputados e deputadas do Chega no dia de aprovação do Orçamento de Estado (as faixas para a rua e os cartazes no plenário), foram um número de marketing político, porventura bem-sucedido na ótica do partido. O Correio da Manhã fez manchete com foto de capa e duas páginas interiores também com foto. DN e Público deram pouco, mas ainda assim algum relevo. Todos os maiores canais de televisão transmitiram a notícia. Há três respostas possíveis a estas ações: ignorar, tentar criminalizar, ou retirar consequências de forma a que não se repitam no futuro. Adoto a terceira. Porém a Ata da 15ª conferência de líderes parlamentares não me deixou tranquilo quanto às possíveis consequências, ou quanto ao esclarecimento sobre comportamentos admissíveis, ou inadmissíveis na Assembleia da República.
Permita-me uma breve introdução teórica geral. A esmagadora maioria das nossas interações sociais não é regulada por leis, regulamentos, códigos de conduta, ou seja, por instituições formais, mas sim por aquilo que os novos institucionalistas económicos designam por instituições informais. Ou seja, regemo-nos por normas de conduta socialmente aceites e interiorizadas pelos cidadãos. É apenas quando alguns indivíduos adotam comportamentos desviantes em relação a essas normas, e quando desse comportamento resultam danos consideráveis para a sociedade que há a necessidade de transformar as instituições informais em instituições formais. Aí surgem as leis, os regulamentos, os códigos de conduta que, para serem eficazes, para além da codificação das normas de comportamento, devem contemplar sanções face ao seu incumprimento. No início dos automóveis não havia código da estrada, mas a pouco e pouco, os danos associados aos acidentes foram sendo cada vez mais elevados. Por exemplo, em Inglaterra as licenças de condução foram introduzidas em 1903, mas o Highway Code, equivalente ao nosso código da estrada, só foi introduzido em 1931 quando havia 2,3 milhões de veículos motorizados e já cerca de 7000 pessoas morriam nas estradas. Foram estes danos humanos consideráveis que levaram à necessidade de adoção desses códigos.
Até há bem pouco tempo, considerava-se que todos os deputados e as deputadas comportavam-se de forma condizente com o seu estatuto e que utilizavam os recursos, materiais e humanos, postos à sua disposição pela Assembleia da República, de forma responsável e digna. Na sequência destes recentes acontecimentos podemos concluir que não é assim. O facto de haver um número significativo de deputados e deputadas com comportamentos desviantes, exige uma densificação das normas e a introdução de sanções associadas. O bem maior a defender, e que está a correr o risco de ser defraudado com a aceitação desses comportamentos, é apenas e tão só – a Democracia. O seu lugar simbólico, por excelência, é a Assembleia da República que tem de ser respeitada e dignificada.
É por demais evidente que o enquadramento normativo e institucional da conduta dos deputados, incluindo o de seus convidados, não é suficiente, como aqui é reportado. No essencial, temos o código de conduta dos deputados (CCD), o Estatuto dos Deputados (ED), o Regimento da Assembleia da República (RAR) e a Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados (CTED) que pretendem zelar precisamente pela aplicação do CCD, fazer recomendações e reportar anualmente sobre a sua aplicação. Já não basta dizer que os deputados devem “utilizar os recursos disponibilizados no âmbito do respetivo mandato de forma responsável” (artº 9º do CCD) ou que “devem desempenhar as suas funções com respeito pelos demais deputados” (artº 5º do CCD). Já não é suficiente dizer que devem “respeitar a dignidade da assembleia da república e dos deputados” (artº 14º, 1 e). Houve um intenso debate na 15ª conferencia de líderes sobre o assunto. José Pedro Aguiar Branco (o PAR) sugeriu que por não estarem previstas sanções “a solução é a auto-regulação”. Pois é aqui que discordo profundamente. Manifestamente a auto-regulação é importante, mas não é solução.
Deixo então aqui algumas ideias para redignificar a instituição parlamentar, ou seja, para que haja efetivamente respeito pela casa da democracia. É necessário prever a aplicação de sanções. A melhor sanção a um deputado por violar ostensivamente o Estatuto do Deputado, e o código de conduta que dele imana, é a suspensão do seu mandato. Tal exige alterações ao enquadramento legal e regulamentar. No entanto, antes disso, poderá existir, desde já, uma recomendação/repreensão aprovada em CTED ao deputado, ou deputada, do grupo parlamentar prevaricador. Esta é a comissão competente para o efeito. É necessário reforçar os poderes do Presidente da Assembleia da República, sempre com possibilidade de recurso das suas decisões ao plenário, incluindo as relativas à utilização dos recursos disponibilizados aos deputados (i.e. gabinetes que não são sua propriedade). Devem ser clarificadas as ações inadmissíveis em plenário, como seja o uso de cartazes. O plenário é, e deve ser, um local de uso da palavra, de contraditório, de deliberação pública, as tomadas de posição no seu interior não podem assemelhar-se a manifestações de rua. Estes poderes do PAR deveriam constar não apenas no RAR, mas também no ED. O PAR é deputado, mas é um primus inter pares. É necessário também introduzir normas sobre o comportamento dos convidados, responsabilizar em primeiro lugar os deputados e deputadas pelo comportamento dos seus convidados, mantendo o PAR a prerrogativa de intervir em caso de desrespeito pela instituição. Estes são apenas alguns contributos que deixo para contraditório dos e das deputadas do seu grupo parlamentar a quem solicito a distribuição deste artigo.
A responsabilidade inteira pela atual degradação da imagem da Assembleia da República é de cada deputado ou deputada quando viola os seus deveres. No entanto, é coletivamente aos grupos parlamentares que deve caber a iniciativa de solucionar os problemas.
Os melhores cumprimentos,
Paulo Trigo Pereira, Ex-deputado
C/c Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco