Atualmente, ao pensarmos na doçaria portuguesas consumida durante a época natalícia, inevitavelmente recordamos os fritos, designadamente as filhós, os sonhos e as fatias douradas ou rabanadas. A reflexão sobre o assunto conduz-nos também ao bolo-rei e ao tronco de Natal. Mas, nem sempre foi assim. Se recuarmos alguns séculos, podemos verificar outros consumos e outras tradições.
Originário da Ásia e conhecido pelas civilizações mediterrânicas da Antiguidade, o açúcar disputou com o mel um lugar cimeir,o em resultado das propriedades terapêuticas e de conservação de outros géneros. Entrou na Península Ibérica através das literaturas farmacológica e dietética árabes, nas quais se apresentavam as marmeladas e as conservas de frutas e flores. A partir do século X, alguns desses textos começaram a ser traduzidos e adaptados pela medicina cristã, sendo visível uma gradual presença desses preparados para a prevenção e cura de várias enfermidades.
A partir do século XV, tudo se precipitou, uma vez que Portugal passou a estar envolvido na produção de açúcar, rapidamente dominando o mercado europeu. Foi pioneiro o da Madeira, cuja produção ficou documentada a partir de 1452, após tentativas malsucedidas no Algarve, no início de Quatrocentos. A produção madeirense dominou os mercados do norte da Europa, até meados do século XVI, apresentando-se de alta qualidade. Por breves décadas, juntou-se o açúcar de São Tomé, com menor grau de pureza. A produção de açúcar no Brasil, a partir da segunda metade de Quinhentos, dominará os circuitos comerciais até meados da centúria seguinte, quando os produtores ingleses, holandeses e franceses das Antilhas se tornaram concorrentes de peso na disputa dos mercados. Mesmo assim, o açúcar brasileiro continuou a ser valorizado por, na maior parte dos casos, ser vendido refinado e apresentar elevada pureza, o que contrastava com a produção das Antilhas.
A existência de açúcar, em quantidade e de qualidade, primeiro na ilha da Madeira e posteriormente no Brasil, levou a um rápido desenvolvimento da doçaria. Então, como na atualidade, esta compreendia uma relevante presença de doces à base de ovos, de frutas (compotas, pastas de frutas e frutas cobertas, isto é cristalizadas) e de farinha, mais pobres e ligados, em especial, a consumos populares. Pelo menos a partir de meados do século XVI, podemos verificar uma relação entre o consumo de determinados doces e as festas do calendário litúrgico.
Segundo João Brandão (de Buarcos), responsável pelo levantamento das atividades económicas da capital e autor de Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, os lisboetas ou todos os que visitavam a cidade, poderiam, durante a quadra natalícia, compreendida entre 15 dias antes do Natal e o dia de Reis, recorrer a comida de rua, disponibilizada por 30 mulheres. Na zona da Ribeira e do Pelourinho Velho, estas vendiam em “mesas cobertas de toalhas e mantéis muito alvos”, cidrada, farteis, isto é, um bolo com amêndoas, envolto em farinha; gergelim, laranjada, marmelada, nogada e pinhoada, a par de “outras conservas” não especificadas. Ou seja, um conjunto de doces com recurso a frutos frescos ou secos e açúcar, destinado aos populares.
Os livros portugueses de receitas da época moderna (séculos XVI-XVIII), quer os manuscritos, quer os impressos, regra geral, não registaram doces relacionados com a época natalícia, apesar de o primeiro receituário exclusivamente dedicado à doçaria, Arte Nova e Curiosas para Conserveiros, Confeiteiros e Copeiros (1788), ter incluído a receita de bolos de rei, que não se assemelha à de bolo-rei ligada à quadra natalícia, e uma outra designada bolos de açúcar e manteiga para o Natal, uma espécie de pães doces. Eis a exceção.
Em Portugal, a situação só se alterará na segunda metade do século XIX, quando o gateau des rois, proveniente de França, fez a sua entrada nas confeitarias portuguesas. Parece ter começado a ser fabricado na Confeitaria Nacional, fundada em 1829, em Lisboa, por Baltazar Rodrigues Castanheira. Coincidindo com a abertura do salão de chá, no primeiro andar do edifício, localizado na Rua da Betesga, quando o seu filho e homónimo tomou as rédeas do negócio, teve início a produção e comercialização de bolo-rei, a partir de 1869, segundo uma receita francesa. Então, ainda se estava longe de uma divulgação alargada e disponível para todas as bolsas. Em Espanha, o bolo-rei já era consumido entre os membros da casa real, pelo Ano Novo, na segunda metade de Setecentos.
Nos receituários do início do século XX, as receitas de bolo-rei começaram a marcar presença. Por exemplo, em 1904, Carlos Bento da Maia, autor do Tratado Completo de Cozinha e de Copa, apresentou uma com pinhões de Leiria e, em 1928, Olleboma, pseudónimo de António de Oliveira Belo, publicou Culinária, um volumoso livro, em que se encontra a receita de bolo-rei, nela se incluindo ameixas de Elvas como um dos ingredientes. Esta foi igualmente incluída em Culinária Portuguesa (1936), do mesmo autor. Em ambas, fez-se alusão a frutos de regiões específicas portuguesas, Leiria e Elvas, tornando evidente alguma adaptação. Emanuel Ribeiro, em O Doce nunca amargou (1923), não apresentou nenhuma receita de bolo-rei. Todas estas obras se destinavam a públicos com meios económicos.
Nas mesmas décadas e seguintes, nas revistas femininas, cujas colunas de culinária e economia domésticas estavam sempre presentes, as sugestões apresentadas para as ceias de Natal incluíam outras iguarias, que não o bolo-rei, mas fritos doces. Por exemplo, em 1933, a Fémina propôs ostras com salsichas, galinha recheada, frutas guarnecidas, foie gras de Bayonne, bolo de mel e frituras de farinha de milho para a Consoada. No ano seguinte, as guloseimas sugeridas para a mesa de Natal foram broas de espécie, broas de mel com erva-doce, filhós de abóbora e pudim de Natal. Bem diferentes foram as propostas pautadas pela frugalidade que, contudo, poderia ser abandonada consoante os recursos de cada um, apresentadas na Menina e Moça, uma revista da Mocidade Portuguesa Feminina, publicada a partir de 1947. Em 1955, Armando Anjos assinou uma página intitulada “A Consoada”. Dedicou-se a indicações acerca da prévia preparação da mesa e deu algumas sugestões: “os pratos frios podem já ficar colocados sobre a mesa. O consommé pronto para ser rapidamente aquecido. Se a ceia constar só duma bebida quente, chocolate ou chá, que esta seja acompanhada por qualquer manjar diferenciado e apetitoso: sanduíches de foie-gras ou fiambre, pãezinhos feitos em casa, brioches, e, sendo possível, a surpresa duma receita nova: um bolo que dê gosto (gosto ao paladar e ao coração). Daqui para diante, não há limites: podeis ir acrescentando peru, sonhos, etc. Mas, por hoje, ficaremos na ceia simples, modesta, e para ela vamos dar algumas receitas [tronco de Natal, pãezinhos e foie-gras]”.
Se as festas do calendário litúrgico (Natal, Carnaval e Páscoa) foram habitualmente assinaladas com consumos alimentares diferenciados e se a associação de fritos doces ao Natal e ao Carnaval remontam a um passado secular, a entrada do bolo-rei nas mesas portuguesas é bem mais recente e, inicialmente, esteve apenas ligada a um consumo sazonal de elite. As últimas décadas viram este padrão alterado com a produção, em algumas pastelarias, do bolo-rei ao longo de todo o ano ou a partir da Páscoa, numa enorme profusão de estabelecimentos, que abrangem desde as confeitarias centenárias até às grandes superfícies. A qualidade e o preço são igualmente variáveis.
A chegada, mesmo tardia, do bolo-rei a Portugal, permitiu incluir um novo produto nas mesas da quadra natalícia. Juntou-se aos muitos e diferentes fritos doces, com caraterísticas e designações díspares no país: azevias, coscorões, filhós, rabanadas, sonhos e tantos outros.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]