Tem sido a grande questão dos últimos dias: de quem era a responsabilidade da definição dos serviços mínimos? É preciso recuar a dia 4, segunda-feira da semana passada, para perceber. Esse dia sentiu os efeitos de duas greves simultâneas. Uma convocada pela Federação Nacional de Sindicatos Independentes da Administração Pública (FESINAP) para toda a função pública. Outra do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH), apenas às horas extraordinárias. Embora a FESINAP não tenha associados no INEM, Hélder Sá, vice-presidente, à Rádio Observador, admite que os trabalhadores possam ter aderido às duas greves.
Na primeira foram convocados serviços mínimos genericamente: para as entidades que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, teria de estar presente o mesmo número de trabalhadores que garante o funcionamento aos domingos, no turno da noite, durante a época normal de férias. “(…) Tais serviços serão fundamentalmente assegurados pelos trabalhadores que não pretendam exercer o seu legítimo direito à greve”, referia o pré-aviso. No segundo caso, o sindicato não estabeleceu serviços mínimos. Ainda que seja uma greve ao trabalho extraordinário, o advogado especialista em direito do Trabalho, Luís Gonçalves da Silva, considera, em declarações à Rádio Observador, que também aqui se deviam decretar serviços mínimos. “A greve a horas extraordinárias, apenas a um bloco temporal, é lícita, e sendo lícita e estando em causa a satisfação de necessidades sociais impreteríveis vejo com dificuldade que pudesse haver dispensa de serviços mínimos, em especial quando sabemos que o recurso ao trabalho extraordinário é um elemento central para a satisfação dessas necessidades sociais impreteríveis”, interpreta.
O INEM, segundo noticiou o Público no fim de semana, não contestou nem um nem outro caso. A SIC noticia esta terça-feira que só três minutos antes do início do último turno, às 15h57, é que o departamento de gestão dos recursos humanos do INEM enviou um email a convocar os serviços mínimos que deveriam ser assegurados “pelos trabalhadores escalados”, cuja identificação constava de uma plataforma interna.
Ao Observador, um ex-dirigente do INEM (que pediu para não ser identificado) defende que “os trabalhadores, estando escalados, devem estar preparados para ser convocados para os serviços mínimos”. “Se até 24 horas antes o sindicato não deu essa indicação, o INEM deverá fazê-lo o mais rapidamente possível. Se houver grande dificuldade de notificar os trabalhadores nas horas seguintes, até pode haver notificações depois de o turno se iniciar. Há um dever de responsabilidade por parte dos trabalhadores, até para cumprir apenas parte do turnos”, defende o ex-responsável máximo pelo instituto.
Por sua vez o especialista em direito laboral João Leal Amado, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, explica que, por lei, o sindicato que convoca a greve deve, no seu pré-aviso, “definir quais os serviços mínimos que entende assegurar durante a greve”. “Se a outra parte” — neste caso, o INEM — “entender que o que está no pré-aviso de greve não é suficiente, que não basta para assegurar a satisfação dos serviços mínimos, deve desencadear os mecanismos” que abrem uma negociação entre as duas partes. O INEM não o terá feito.
O professor João Leal Amado acrescenta que se a entidade empregadora não concorda com os serviços mínimos definidos deve marcar reuniões com a outra parte para chegar a acordo. Se não chegar, a questão terá de ser resolvida num tribunal arbitral.
Uma vez definidos os serviços mínimos, cabe à estrutura que convocou a greve definir os trabalhadores escalados para trabalhar no dia da greve. A lei dita que se não o fizer no prazo de até 24 horas antes do início da greve, “deve o empregador público”, neste caso o INEM, “proceder a essa designação”.
À Rádio Observador, Hélder Sá reitera que a FENISAP cumpriu a lei e diz mesmo que houve entidades que pediram à estrutura sindical reuniões para a negociação dos serviços mínimos noutros setores, com a mediação da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP). Essas entidades foram o Instituto de Registos e do Notariado e a Direção-Geral da Administração da Justiça. O INEM não os contactou.
Hélder Sá conta que só no dia da própria greve, às 17h49, recebeu um contacto da diretora dos recursos humanos do INEM. “O que propusemos foi, muito embora já estivessemos quase no final do dia [de greve], que fosse adotado o mesmo sistema dos hospitais”, explica: ou seja, que estivesse de serviço o mesmo número de pessoas do domingo anterior à marcação da greve.
Rui Lázaro, do STEPH, defendeu à Rádio Observador que “o problema central é que o INEM já trabalha tanto abaixo dos mínimos que basta um trabalhador ficar doente e não poder ir trabalhar para causar transtorno ao serviço. Terá sido que o aconteceu nas duas greves”.
Ainda que o pré-aviso de greve da FENISAP indicasse os serviços mínimos, ao Público, o INEM remeteu para o acordo coletivo assinado em 2011 — que já prevê serviços mínimos — para justificar o seu entendimento de que não tinha de os definir nesta greve. Mas a federação que assinou esse acordo não foi a mesma que convocou a greve. Pelo que a FENISAP não está vinculada ao documento.
Nas declarações que fez à comunicação social esta terça-feira, o presidente do INEM sugere que o instituto notificou os trabalhadores necessários para garantir o cumprimento dos serviços mínimos, o que equivale a 80% dos trabalhadores escalados em determinado dia, neste caso na segunda-feira. No entanto, Sérgio Dias Janeiro sublinhou que não foi possível cumprir com os serviços mínimos. “Apesar de termos emitido uma circular e contactado diversos trabalhadores, com muitos esforços, não conseguimos que a escala tivesse sido cumprida acima dos 70%”, disse o responsável aos jornalistas, após ter-se reunido com a ministra da Saúde, que foi esta terça-feira visitar a sede do INEM, em Lisboa.
Questionado sobre se os trabalhadores se recusaram a cumprir os serviços mínimos, o presidente do INEM disse que essa “situação vai ser avaliada e investigada”. “Primeiro vai haver um processo de inquérito e, naturalmente, se houver lugar a processos disciplinares, naturalmente apuraremos responsabilidades. […] Vamos averiguar em detalhe todas as notificações que foram feitas e todo o contexto envolvente desta situação”, garantiu.
Num segundo momento, Sérgio Dias Janeiro explicou que, “num dia de greve”, o INEM tem “obrigatoriamente de ter acima de 80% desse número”, ou seja, dos trabalhadores escalados em funções. É isso que está definido no acordo coletivo de trabalho assinado em 2011 com a então chamada Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública, um sindicato afeto à CGTP. O entendimento do INEM é que é esse acordo coletivo de trabalho que vigora. Isto embora a greve de dia 4 de novembro tenha sido convocada pela Federação Nacional de Sindicatos Independentes da Administração Pública e de entidades com Fins públicos.
À Rádio Observador, Rui Lázaro garante, no entanto, que os recursos humanos do INEM não notificaram os trabalhadores para o cumprimento dos serviços mínimos.
Serviços mínimos. “Responsabilidade de os decretar era do INEM”
No Parlamento, Ana Paula Martins admitiu, esta terça-feira, que os serviços não foram cumpridos num dos turnos da passada segunda-feira, dia 4 de novembro. “Dia 4 de novembro duas greves tiveram lugar. E pelo menos um dos turnos não cumpriu os serviços mínimos, por falta de recursos humanos. Foram muitas as chamadas por atender”, reconheceu Ana Paula Martins. Já esta tarde, depois da visita à sede do INEM, a ministra apontou a agulha para os trabalhadores do instituto.
“Todos os trabalhadores da administração pública, e os nossos técnicos de emergência pré-hospitalar não são exceção, têm ou em contrato coletivo de trabalho ou na própria lei definido a priori, naquilo que são serviços de urgência (serviços que trabalham 24 sobre 24 horas) os serviços mínimos. Eles já sabem dessa situação”, disse a ministra, lembrando, no entanto, que a IGAS vai conduzir, a pedido da tutela, uma inspeção para aferir se os serviços mínimos foram cumpridos de forma adequada.
Segundo o relatório anual de gestão e atividades, o INEM chegou ao final de 2023 (os dados consolidados mais recentes) com 1.355 postos de trabalho efetivamente ocupados, o que significa um défice de 16%. É que por ocupar estavam 264 empregos (a situação piorou em 2024).
A estes 1.355 efetivos somam-se mais 226 trabalhadores em regime de prestação de serviços — 178 médicos, 41 enfermeiros e seis trabalhadores equiparados a assistentes técnicos, com funções nos CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) — vulgarmento conhecido por centro de atendimento do 112 — e um prestador de serviços, o fiscal único. O INEM reconhece no relatório que tem recorrido a prestadores de serviços para “suprir a carência de recursos humanos, particularmente da carreira especial médica”.
Os técnicos de emergência pré-hospitalar (TEPH) representam mais de metade destes efetivos. No final de 2023, contabilizavam-se 897 trabalhadores (145 em funções no CODU, 734 em funções nos Meios, e 18 em funções de backoffice por terem sofrido um acidente de trabalho), quando o quadro poderia ter acomodado mais 156 trabalhadores. Face a 2018, há menos 84 técnicos nesta categoria. Nas funções de coordenador geral de TEPH estavam quatro pessoas e na de coordenador operacional eram 18, em 2023.