Quando a nuvem em formato de cogumelo se ergueu sobre os destroços de Hiroshima a 6 de agosto de 1945, julgou-se estar perante o estágio final do domínio da humanidade sobre a natureza. O poder nuclear deixou duas cicatrizes no Japão que puseram o mundo em sentido, revelando a mesma capacidade devastadora que já tinha levado o seu alquimista-mor a professar “a Morte, a destruidora de mundos” durante o seu primeiro ensaio em Los Alamos.
A citação das escrituras hindus, tornada infame pelos lábios de J. Robert Oppenheimer, omite, porém, qualquer sentimento de arrependimento que o físico norte-americano possa ter nutrido quanto à sua invenção. Em vez de palavras, o cientista tentou demonstrá-lo com ações, passando o resto da sua vida a combater a proliferação nuclear — sem sucesso. O problema das invenções é que são como o génio dos três desejos: quando saem cá para fora, não dá para enfiá-las de volta na lâmpada. Richard Jordan Gatling que o diga.
Se o nome acima lhe parecer familiar, é porque adorna outra das invenções mais malignas que o Homem ousou parir: a arma Gatling, precursora das metralhadoras. Chocado perante a mortandade que os conflitos armados impunham sobre os seus concidadãos, este inventor oitocentista da Carolina do Norte concebeu uma ferramenta tão mortífera que, decerto, tornaria a guerra obsoleta — ou, pelo menos, reduziria a necessidade de grandes exércitos e, consequentemente, evitaria mais mortes.
O que Gatling não conseguiu prever é que, em vez de impedir a guerra, inaugurou um novo patamar ao automatizá-la. Ao invés de fugir das metralhadoras, as nações fizeram fila para adquiri-las. Menos de um século depois, a mesma lógica instalou-se face às bombas atómicas, ainda as poeiras radioativas de Hiroshima e Nagasaki estavam a assentar. É aqui que entra Andrei Sakharov.
Antes de ser um dissidente da União Soviética e do seu apelido batizar prémios humanitários, este físico moscovita esteve por trás da mais poderosa bomba termonuclear jamais concebida, a “Tsar Bomba”. Só que apesar do contexto da Guerra Fria, tal explosivo não foi criado para amedrontar o Ocidente, mesmo que esse pudesse ser o objetivo do Comité Central — Sakharov era mais Gatling do que Oppenheimer. Quando foi largado no Ártico em 1963, este dispositivo — 1570 vezes mais potente que as bombas largadas no Japão e capaz de varrer uma cidade do tamanho de Paris — pôs fim à escalada armamentista ao demonstrar o que estava reservado ao mundo caso continuasse por esse caminho.
“Os generais muito rapidamente começaram a encarar a bomba de Hiroshima como apenas outra bomba, isso não pôs fim às guerras. Mas a ‘Tsar Bomba’ e esta ideia de uma guerra termonuclear instituíram essa era da destruição mútua assegurada”, conta Owen Matthews. O jornalista, historiador e escritor conversou com o Observador a propósito do lançamento de Sol Negro (edição pela Minotauro) em Portugal, o primeiro volume de uma trilogia de thrillers passados em solo soviético.
O introito acima justifica-se porque, apesar de ficcional, a ação de Sol Negro decorre durante a criação bem real da “Tsar Bomba”. Este romance coloca Aleksandr Vasin, oficial de um departamento especial do KGB, a investigar a morte de um cientista na cidade de Arzamas-16 onde tal bomba foi concebida. Além das tramoias expectáveis de um mistério colocado no seio do poder soviético, acresce o secretismo de tal projeto chocar de frente com a procura pela verdade do protagonista deste livro.
O medo apocalíptico no cerne de Sol Negro é o mesmo que coloca hoje os grandes atores internacionais em sentido — mesmo que as tensões entre NATO e a Rússia cresçam de dia para dia no decurso da invasão da Ucrânia pelo regime de Vladimir Putin. O problema, afirma Matthews, é que “ninguém escreveu as regras quanto à utilização de armas nucleares táticas” e o seu uso, se “for normalizado, mudará a face das guerras e o decurso da história humana”.
É com sob esta premissa que Matthews — que assina uma coluna habitual no Spectator sobre a política russa e que publicou em 2023 Passar as Marcas (Edições 70) sobre o dealbar da invasão sobre a Ucrânia — entrou numa extensa conversa: sobre os possíveis desenlaces da guerra, os riscos do regime de Putin cair e a curiosa observação de que o presidente russo deve mais o seu autoritarismo a uma figura como António de Oliveira Salazar do que aos mais famosos ditadores europeus do século XX.
Sol Negro ficciona o desenvolvimento da bomba nuclear mais poderosa alguma vez criada — a RDS-220, também conhecida como “Tsar Bomba”. O que é que neste processo o interessou para escrever este romance?
O que achei incrivelmente fascinante foi quando me deparei com as memórias de Andrei Sakharov, o criador da “Tsar Bomba” — tornando-se, mais tarde, claro, o famoso dissidente soviético. O que é realmente fascinante nesse livro de memórias é o facto de Sakharov descrever um grupo de pessoas, de cientistas, que reuniu e que viveram numa comunidade com uma vida intelectual muito rica. Estranhamente, viveram numa espécie de bolha de liberdade, apesar de estarem no centro do projeto de armamento mais secreto da União Soviética. Só que, devido às suas próprias regras internas, foi-lhes efetivamente permitido o acesso a todo o tipo de materiais proibidos: livros, correspondência, jornais e assim por diante. Mas a questão a reter aqui é que esta comunidade de cientistas tinha como trabalho diário imaginar a destruição da espécie, da vida na Terra. E eu pensei que, a nível psicológico, este é um cenário extraordinário para qualquer tipo de drama humano. O que é que passou pela cabeça destas pessoas? E como é que elas lidaram com isso? Passaram os dias a pensar na morte, mas, apesar disso, viveram a vida de seres humanos normais.
E outra coisa que me marcou foi o facto de Sakharov, apesar de ter ajudado a criar a arma mais mortífera que a humanidade alguma vez fabricou, fê-lo por uma razão totalmente não bélica, com uma motivação pacifista. Isto parece algo louco, mas na verdade foi algo muito lógico. A ideia é que se criássemos uma bomba tão terrível que fosse capaz de destruir um país — e muitas delas juntas destruiriam o planeta inteiro — então, efetivamente, acabaríamos com as guerras. É por isso que ele ajudou a fazer isto. [Sol Negro] não começou propriamente com a história da “Tsar Bomba”, mas com o mundo em que esta foi criada, com a génese do projeto.
O ambiente de Sol Negro é o de um noir clássico. Vasim é um herói falível, mas também um idealista que tenta procurar a verdade contra todas as probabilidades. Porque é que acha que a União Soviética funciona bem para este tipo de história?
Bem, para começar, tem um vilão muito identificável. Sem chegar ao ponto de usar a palavra “maligno” para descrevê-lo, o seu sistema dedicava-se basicamente a esmagar o individualismo e a destruir o espírito humano — o que era um pouco paradoxal, dado que o comunismo, em teoria, assenta em princípios incrivelmente elevados e amigáveis. De qualquer forma, a União Soviética, tal como existiu, teve este estado todo poderoso e que é um antagonista extremamente bom. Sol Negro é o primeiro de uma trilogia e o estado securitário soviético é terreno muito fértil para ficção. É todo poderoso, todo omnipresente. Mas também, o que o torna mais interessante — a razão pela qual a União Soviética é um local tão interessante para situar um thriller noir —, é o facto de ter esta espécie de profunda ambiguidade moral. É um pouco aquilo a que aludi, temos uma sociedade dedicada a ideias de justiça e igualdade que, de alguma forma, consegue perpetrar grandes males. Além disso, tivemos pessoas dentro do estado securitário a tomar todo o tipo de decisões morais muito difíceis. Tornaram-se como os jesuítas, uma espécie de classe sacerdotal que decidia quem era castigado e quem não era. Na verdade, no centro de tudo isto, tivemos estas pessoas que se debatiam com todas estas formas pragmáticas de aplicar ou não o poder do Estado. E Vasim é uma espécie de herói noir clássico, porque é um tipo pequeno, mas com princípios — o que, ao mesmo tempo, é também uma coisa soviética muito real. Estive na União Soviética várias vezes, em criança e na adolescência, e foi espantoso ver como, apesar de muitas pessoas serem cínicas em relação ao regime, muitas outras eram também idealistas, estranhamente. Não sei como o conseguiam, mas eram. Portanto, é uma coisa real: as pessoas, apesar de terem de viver toda a sua vida no sistema soviético rodeadas de hipocrisia, conseguiram manter esta espécie de princípios morais idealistas.
O que está a dizer, no fundo, é que apesar de considerarem que o sistema não era perfeito, as aspirações do comunismo ainda lhes soavam bem, relativizavam tudo o que estava errado no sistema para perseguirem esse objetivo.
E é isso que faz de Vasim um polícia tão mau [risos]. A certa altura, os colegas gozam com ele. Do tipo: “Ainda acreditas que o sistema pode ser bom e que estamos a fazer o que é suposto fazermos?”. Eles riem-se, mas ele continua a acreditar.
Uma das características de Sol Negro é o retrato da luta pelo poder entre diferentes organizações soviéticas — por vezes, até dentro da mesma organização, como o KGB de Vasim — e os perigos que daí advêm. Fomos habituados a olhar para a Rússia como uma espécie de paraíso da traição e das políticas de bastidores — quão verdadeira é essa perspetiva nos dias que correm?
Continua a ser muito verdade — aliás, penso que é muito mais verdadeiro hoje do que era no tempo soviético, por uma razão muito importante. Quando o regime soviético se estabilizou, diria que no período do pós-guerra, houve de facto a formação de instituições bastante fortes. Nos anos 20, era tudo uma espécie violenta de política cortesã bizantina. Mas já na década de 30 assiste-se à criação de instituições — não propriamente da sociedade civil, mas sim burocráticas, que têm as suas próprias estruturas e as relações entre si definidas. Existe uma hierarquia, existe este comité e aquele.