O novo mapa partidário, saído das eleições de 10 de Março, oferece-nos um sistema em desequilíbrio, sem que se consiga antecipar como ou quando se vai reajustar num novo equilíbrio, se é que isso vai acontecer sem novas eleições, sejam elas a curto prazo ou num horizonte de dois anos. O processo de eleição do presidente da Assembleia da República, a segunda figura do Estado, transmitiu-nos a primeira imagem da instabilidade que nos espera. E que convida a tentações de campanha permanente, em preparativos para novo acto eleitoral.
Como disse, em declarações à RTP, António Filipe o mais antigo deputado em funções que esteve a dirigir a abertura dos trabalhos, o que aconteceu “é um sinal que não é bom”, de que a actual composição do Parlamento é “geradora de instabilidade” e pode estar já a dizer-nos “o que virá aí”.
E se os partidos que até hoje têm sido os pilares da democracia portuguesa, PS e PSD, não começarem a aceitar e a enfrentar com inteligência aquilo que os eleitores decidiram, que foi dar ao Chega o poder de ser o terceiro maior partido, muito próximo deles, em breve teremos novas eleições. E com a eficiência que o Chega tem mostrado, ajudado pela “cerca sanitária” de que foi alvo e que manifestamente apenas lhe ofereceu mais eleitores, poderemos acabar com uma vitória de André Ventura, o resultado eleitoral que a maioria tem tentado combater.
A AD e especialmente o PSD não foi especialmente inteligente neste processo de eleição do presidente da Assembleia da República. Esperemos que tenha aprendido a lição e se reajuste à minoria que tem e aceite o peso e a importância que o Chega ganhou com as eleições. Tal como o PS tem de deixar de alimentar o eleitorado do Chega, como o fez no passado, na sua tática de se perpetuar no poder e que também ela não funcionou. E não pode continuar a fazer do Chega um papão tal como o PSD não pode deixar-se armadilhar como também se verificou até agora.
O “mau sinal” do que se passou na abertura do Parlamento e referido pelo deputado António Filipe aponta para um enorme risco para a governação, quando temos problemas muito concreto para resolver. Já se antecipava que Luís Montenegro teria de governar por decreto, evitando o Parlamento para contornar a sua minoria, o perigo de contar apenas com o PS e a sua posição de não negociar com o Chega. Mas o que se antecipa como preocupante, perante a clivagem a que assistimos, é que corremos o sério risco de entrarmos em campanha eleitoral mais cedo do que se esperava. A tentação de repetir a história de Cavaco Silva em 1985 que lhe deu a maioria absoluta em 1987 reforça-se, perante o risco exposto pelo conturbado processo de eleição da liderança do Parlamento.
E é aqui que chegamos ao necessário e importante alerta sobre o risco de considerarmos que temos “os cofres cheios”. Esta instabilidade política cria o sério risco de desperdiçarmos o esforço de reequilíbrio das contas públicas que começou com Pedro Passos Coelho e foi continuado por António Costa. Ainda que a estratégia de redução do défice, que nos levou até ao excedente histórico de 1,2% do PIB em 2023, possa ser criticável e esteja na origem dos problemas que hoje se enfrenta, de degradação dos serviços públicos e dos problemas com algumas categorias profissionais da administração pública, o certo é que conseguimos que todos passassem a valorizar o equilíbrio orçamental e entrámos numa trajetória saudável de redução da dívida pública.
Colocar em risco esta trajetória é desafiar o futuro, embora se possa escolher outro caminho para atingir o mesmo objetivo, valorizando designadamente os serviços públicos e não sacrificando o investimento. É aliás lamentável que alguns socialistas critiquem o excedente por considerarem que poderia ter isso usado para se obter mais votos nas eleições, olhando para as contas públicas como ferramenta eleitoral.
O problema é que essa mensagem, de uso do excedente para conquistar eleitorado, pode encontrar hoje caminho para se concretizar, na sequência da instabilidade que resultou das eleições e que nos coloca sob a ameaça constante de novo acto eleitoral. E com isso podemos estar a criar um problema no nosso futuro coletivo por várias razões.
A primeira razão é que temos uma dívida enorme. Sim, diminuiu em percentagem do PIB mas ainda é de 263 mil milhões de euros, quase tanto como aquilo que produzimos o ano passado ( 99,1% do PIB). Dizer que um excedente de 1,2%, da ordem do três milhões de euros, é um excesso e é ter os cofres cheios é como alguém que deve cem euros achar que tem os seus problemas resolvidos porque poupou pouco mais de um euro.
É verdade que neste momento não estamos entre os países mais endividados da Europa, mas continuamos a ser dos mais endividados do mundo. E sendo certo que neste momento não temos problemas em arranjar empréstimos para essa dívida, nada nos garante que de repente tudo muda, como aconteceu em 2011.
E existe um efetivo risco de tudo mudar face às carregadas nuvens que temos no horizonte europeu. A perspetiva de uma guerra neste lado da Europa é real e temos de nos preparar para investir mais em defesa do que no passado, como aliás já está a acontecer nos países da Europa central. E num quadro destes podemos igualmente de precisar de dinheiro para apoiar famílias ou mesmo empresas afectadas por essa instabilidade.
Foi aliás o facto de termos já as contas controladas, independentemente da forma criticável como se fez isso, que permitiu ao Governo de António Costa apoiar as famílias e as empresas na pandemia e os que tiveram mais dificuldades por causa da inflação. Sem a margem orçamental que foi sendo ganha isso não teria sido possível.
A terceira razão está relacionada com as necessidades de investimento que temos nas infra-estruras, na modernização da administração publica, na transição energética e digital e, claro, na defesa. Parte dessas necessidades são explicadas pela falta de investimento nos últimos anos, uma das vias escolhidas para reequilibrar as contas públicas na era de Costa. Além disso, os fundos comunitários não vão durar para sempre.
A quarta razão está no envelhecimento da população que vai precisar de cuidados de saúde e receber pensões. Se queremos ter o SNS a garantir serviços tendencialmente gratuitos e se queremos ter pensões de reforma e apoios sociais quando precisamos temos de ir reduzindo a dívida e criando uma folga para os tempos difíceis.
Finalmente convinha que olhássemos bem para as contas. O excedente de pouco mais de três mil milhões de euros é explicado pela segurança social que, essa sim, teve um excedente de 5,6 mil milhões de euros, já que o Estado teve um défice da ordem dos 2,3 mil milhões de euros a que se somam outro défice da ordem dos 147 milhões de euros da administração local. Isto significa que este excedente está a ser alimentado pelo nível recorde de emprego e todos sabemos que isso pode não durar para sempre.
Se queremos garantir o futuro é melhor deixarmos de achar que nos saiu a lotaria ou o euro-milhões. Não saiu. Podemos obviamente satisfazer algumas reivindicações e garantir investimentos que melhorem os serviços públicos, mas com cuidado. Mas é preciso que Luís Montenegro não caia na tentação de usar as contas públicas como ferramenta de conquista de eleitorado, pondo em causa o futuro do País.