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Cravo e caril – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Dez 24, 2024

Ninguém ficou bem na fotografia. Tudo começa, desde logo, na imagem pirómana em que dezenas de pessoas são colocadas em fila com as mãos encostadas à parede na zona do Martim Moniz. Relatos no local deram conta que muitos transeuntes com ar mais ocidental foram poupados à coreografia, mesmo que, no fim da operação, as detenções tenham sido de pessoas oriundas de geografias que nada têm a ver com o Indostão: um português e um marroquino. Este foi o rastilho mas, a partir daqui, foi evidente o aproveitamento político — mais ou menos descarado.

Luís Montenegro foi o primeiro a ver na operação uma oportunidade para afirmar este como um Governo mais securitário para recuperar uma parte do eleitorado para o Chega. O que é, desde logo, um erro porque os eleitores tendem a gostar mais do original do que da cópia apressada. Nos próprios argumentos, Montenegro disse que a ação era importante para dar mais “visibilidade e proximidade no policiamento”. Ora, o policiamento de proximidade passa, precisamente, por um envolvimento na vida das comunidades que vivem em determinados locais (o agente que toca à porta da velhinha para saber se está bem, o carro da escola segura que transmite segurança a alunos) e não por um folclore aparatoso de armas. Duvido que quem ali more se tenha sentido naquele dia mais seguro por ver o seu bairro sitiado ou a sua rua fechada pela polícia.

Além disso, as operações de combate ao tráfico de droga por norma ganham por ser discretas e não aparatosas. Ainda assim, essa é uma avaliação técnica de segurança que só a polícia pode fazer. E é nessa independência operacional que estava a chave da resposta de Montenegro: o primeiro-ministro devia ter dito que as indicações do Governo é para que haja um combate mais efetivo ao tráfico, mas que questões operacionais devem ser colocadas ao comando da PSP. E, claro, devia dispensar qualificações sobre a visibilidade porque o combate ao crime não é um show de robocops.

O PS perdeu-se igualmente no oportunismo. O expoente máximo desse cinismo político foi o presidente da junta de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, que em julho exigia mais polícia nas ruas (para provar a negligência de Carlos Moedas) e cinco meses depois se vem queixar da presença musculada da PSP. Quando em 2023 houve uma operação similar no Martim Moniz (ninguém sabe se com mais ou menos gente encostada à parede) Pedro Nuno Santos era membro do Governo. José Luís Carneiro, outro dos que protestou contra o atual Governo, era nessa altura ministro da Administração Interna.

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Em 1999, quando era António Guterres o primeiro-ministro e João Soares presidente da câmara de Lisboa (que pedia então “firmeza” à polícia naquela zona) houve um cerco (e não foi ato isolado) ao Martim Moniz. A sensibilidade era tanta que a PSP chamou à ação operação “Caril”. A presença foi tão descabida que a Polícia Judiciária, na altura tutelada por António Costa, acusou a PSP de atrapalhar as suas ações com tão espalhafatoso aparato. O governo era PS, a autarquia também.

O aproveitamento político não acontece com o desfile de cravos ao peito na rua do Benformoso — que é sempre, como diria Passos Coelho da Grândola, de incontestável bom gosto –, mas sim com o facto dessa marcha ser, propositadamente, seletiva. Se fosse há um ano, com um Governo de maioria absoluta do PS, não tinha acontecido. E não aconteceu. O mesmo acontece com o manifesto assinado por 21 personalidades que acusam o primeiro-ministro de estar a colocar em causa o Estado de Direito e o Estado Social. O primeiro objetivo dos subscritores não é defender os imigrantes (interesse que também terão, naturalmente), mas sim colar o Governo a uma imagem de extremismo. A ideia é polarizar. Entre a esquerda e a direita. Entre os que são contra e a favor e a imigração. Entre os bons e os maus.

Luís Montenegro não é André Ventura desde logo porque deixa bem claro que não faz associações entre crimes e um determinado grupo étnico. Também não demoniza certos beneficiários de Rendimento Social de Inserção, nem sequer dá diretivas para os apertar tanto como fazia o Governo Passos-Portas. E, mesmo na questão do turismo de saúde, parece mais querer regular para proteger o sistema do que limitar o acesso de cuidados de saúde a quem seja imigrante e deles precise. A esquerda, pelo mesmo interesse político com que acusa Montenegro de se colar a Ventura, não se importa de misturar tudo.

A tática é antiga. Todos no CDS eram fascistas até aparecer o Chega. Em 2004, lembro-me que um dos slogans ecoados nas ruas antes de Sampaio decidir colocar um ponto final no Governo era “Portas e Santana/Fascismo à paisana”. A verdade é que, nessa altura, Portugal parecia protegido por um certo equilíbrio e moderação na vida pública e política. Essa imunidade lusitana acabou. Hoje, ou se é woke ou chalupa. Ou fascista ou estalinista. Radical ou extremista. O que interessa é polarizar. O resultado não vai ser muito diferente do que aconteceu noutros países, como o Brasil, com uma sociedade profundamente dividida. No fim do dia a indignidade do Raja (nome fictício, mas que pode ser bem real) é maior por não ter onde dormir do que ter estado uns minutos encostado à parede e a dona Maria (nome fictício, mas que pode ser bem real) sente-se mais insegura com a presença da polícia do que com os indianos que encontra na mercearia. Mas isso parece ser o que menos interessa a quem ali foi desfilar de cravo (da esquerda) ou rosa branca (da direita populista).





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