Ninguém ficou bem na fotografia. Tudo começa, desde logo, na imagem pirómana em que dezenas de pessoas são colocadas em fila com as mãos encostadas à parede na zona do Martim Moniz. Relatos no local deram conta que muitos transeuntes com ar mais ocidental foram poupados à coreografia, mesmo que, no fim da operação, as detenções tenham sido de pessoas oriundas de geografias que nada têm a ver com o Indostão: um português e um marroquino. Este foi o rastilho mas, a partir daqui, foi evidente o aproveitamento político — mais ou menos descarado.
Luís Montenegro foi o primeiro a ver na operação uma oportunidade para afirmar este como um Governo mais securitário para recuperar uma parte do eleitorado para o Chega. O que é, desde logo, um erro porque os eleitores tendem a gostar mais do original do que da cópia apressada. Nos próprios argumentos, Montenegro disse que a ação era importante para dar mais “visibilidade e proximidade no policiamento”. Ora, o policiamento de proximidade passa, precisamente, por um envolvimento na vida das comunidades que vivem em determinados locais (o agente que toca à porta da velhinha para saber se está bem, o carro da escola segura que transmite segurança a alunos) e não por um folclore aparatoso de armas. Duvido que quem ali more se tenha sentido naquele dia mais seguro por ver o seu bairro sitiado ou a sua rua fechada pela polícia.
Além disso, as operações de combate ao tráfico de droga por norma ganham por ser discretas e não aparatosas. Ainda assim, essa é uma avaliação técnica de segurança que só a polícia pode fazer. E é nessa independência operacional que estava a chave da resposta de Montenegro: o primeiro-ministro devia ter dito que as indicações do Governo é para que haja um combate mais efetivo ao tráfico, mas que questões operacionais devem ser colocadas ao comando da PSP. E, claro, devia dispensar qualificações sobre a visibilidade porque o combate ao crime não é um show de robocops.
O PS perdeu-se igualmente no oportunismo. O expoente máximo desse cinismo político foi o presidente da junta de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, que em julho exigia mais polícia nas ruas (para provar a negligência de Carlos Moedas) e cinco meses depois se vem queixar da presença musculada da PSP. Quando em 2023 houve uma operação similar no Martim Moniz (ninguém sabe se com mais ou menos gente encostada à parede) Pedro Nuno Santos era membro do Governo. José Luís Carneiro, outro dos que protestou contra o atual Governo, era nessa altura ministro da Administração Interna.
Em 1999, quando era António Guterres o primeiro-ministro e João Soares presidente da câmara de Lisboa (que pedia então “firmeza” à polícia naquela zona) houve um cerco (e não foi ato isolado) ao Martim Moniz. A sensibilidade era tanta que a PSP chamou à ação operação “Caril”. A presença foi tão descabida que a Polícia Judiciária, na altura tutelada por António Costa, acusou a PSP de atrapalhar as suas ações com tão espalhafatoso aparato. O governo era PS, a autarquia também.
O aproveitamento político não acontece com o desfile de cravos ao peito na rua do Benformoso — que é sempre, como diria Passos Coelho da Grândola, de incontestável bom gosto –, mas sim com o facto dessa marcha ser, propositadamente, seletiva. Se fosse há um ano, com um Governo de maioria absoluta do PS, não tinha acontecido. E não aconteceu. O mesmo acontece com o manifesto assinado por 21 personalidades que acusam o primeiro-ministro de estar a colocar em causa o Estado de Direito e o Estado Social. O primeiro objetivo dos subscritores não é defender os imigrantes (interesse que também terão, naturalmente), mas sim colar o Governo a uma imagem de extremismo. A ideia é polarizar. Entre a esquerda e a direita. Entre os que são contra e a favor e a imigração. Entre os bons e os maus.
Luís Montenegro não é André Ventura desde logo porque deixa bem claro que não faz associações entre crimes e um determinado grupo étnico. Também não demoniza certos beneficiários de Rendimento Social de Inserção, nem sequer dá diretivas para os apertar tanto como fazia o Governo Passos-Portas. E, mesmo na questão do turismo de saúde, parece mais querer regular para proteger o sistema do que limitar o acesso de cuidados de saúde a quem seja imigrante e deles precise. A esquerda, pelo mesmo interesse político com que acusa Montenegro de se colar a Ventura, não se importa de misturar tudo.
A tática é antiga. Todos no CDS eram fascistas até aparecer o Chega. Em 2004, lembro-me que um dos slogans ecoados nas ruas antes de Sampaio decidir colocar um ponto final no Governo era “Portas e Santana/Fascismo à paisana”. A verdade é que, nessa altura, Portugal parecia protegido por um certo equilíbrio e moderação na vida pública e política. Essa imunidade lusitana acabou. Hoje, ou se é woke ou chalupa. Ou fascista ou estalinista. Radical ou extremista. O que interessa é polarizar. O resultado não vai ser muito diferente do que aconteceu noutros países, como o Brasil, com uma sociedade profundamente dividida. No fim do dia a indignidade do Raja (nome fictício, mas que pode ser bem real) é maior por não ter onde dormir do que ter estado uns minutos encostado à parede e a dona Maria (nome fictício, mas que pode ser bem real) sente-se mais insegura com a presença da polícia do que com os indianos que encontra na mercearia. Mas isso parece ser o que menos interessa a quem ali foi desfilar de cravo (da esquerda) ou rosa branca (da direita populista).