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“Custa muito conquistar direitos e custa muito pouco perdê-los” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Abr 6, 2024


Era uma menina como todas as outras, precisava do colo do pai e da mãe, vivia os medos do bairro, encontrava no conforto do lar o centro do seu mundo. Tornou-se numa adolescente como todas as outras, os mesmos anseios, as mesmas paixões, as mesmas descobertas. E ficou adulta, como todas as outras mulheres, os problemas da subsistência, da independência financeira, da incapacidade de pagar casa e ter de regressar à casa dos pais. Só que não era bem como as outras meninas, como as outras adolescentes, como as outras mulheres.

É preciso ler este romance de estreia de Alana S. Portero para perceber a dor que é nascer e viver num corpo que não corresponde à nossa mente, sermos femininas mas termos um corpo masculino (ou vice-versa). Em Maus Hábitos, é feito o retrato íntimo de uma mulher trans, desde a infância à idade adulta, num trajeto que se assemelha ao da epopeia. Entrevistámos a autora.

O antigo bairro da personagem principal deste livro e a sua idade são os mesmos que os da Alana. Ambas nasceram em 1978 e ambas cresceram em San Blas. Podemos chamar a este romance uma autoficção?
Não sei se esta história reúne todas as características para ser uma autoficção. O bairro é uma, a idade da personagem é outra e, ainda, o facto de ela ser uma mulher trans. Precisei desses três itens para construir uma boa história, uma boa ficção. Mas acho que chamar-lhe autoficção é muito. Sei que essa personagem, que essa história se parece muito com a minha própria história, com a minha própria vida, mas esteticamente. Há mais ficção do que realidade. Estes dois ou três pontos são a base sobre a qual pude construir uma ficção rigorosa. Não sou uma escritora muito engenhosa. Não tenho uma imaginação muito boa. Acho que sou muito limitada. E, para o meu primeiro romance, precisava de pisar num bom chão, numa boa base.

Muitos escritores dizem que, quando estão a escrever, estão de certa forma a aprender algo sobre si próprios. Escrever este romance ajudou-a a aprender um pouco mais sobre si própria?
Sim, acho que é inevitável. Em todos os romances, em todas as coisas que uma pessoa escreve com o coração aberto, com a mente aberta e com um pouco de risco. Com este livro, essa aprendizagem sobre mim própria aconteceu meses depois de ter terminado de escrevê-lo. Foi com o passar do tempo que me apercebi das mudanças que produziu em mim, das coisas que aprendi sobre mim. Mas foi necessário passar tempo.

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Que mudanças?
Dei-me conta de que estou muito mais em paz com a minha própria vida do que pensava estar. E que as minhas feridas sararam bem melhor do que acreditava terem sarado. Estou em paz com o meu passado. Senão, não teria conseguido construir uma ficção tendo-me como base.

É também uma ativista, escreve para teatro, é poeta. De que forma é a prosa, o romance, diferente em termos de autoconhecimento?
Esta pergunta é-me muito difícil de responder. Em Maus Hábitos acho que arrisco mais. Quando escrevo drama, teatro, quando escrevo poesia ou artigos, acho que tenho uma posição de maior controlo sobre o que escrevo e domino melhor o código que estou a escrever, por pura prática, porque o faço com muita frequência. O romance implicou um risco, implicou atrevimento. E isso, sim, deixa-nos sempre numa posição vulnerável. Outra coisa que aprendi ao escrever este romance é que a minha vulnerabilidade é uma coisa muito boa, é muito útil para um artista, para um escritor. Perder o meu próprio controlo foi a melhor coisa que eu podia ter dado ao meu texto, ao meu romance.

A capa da edição portuguesa de “Maus Hábitos”, de Alana S. Portero (Alfaguara)

Quão difícil foi perder o controlo?
Para mim, muito. Considero-me uma control freak.

No romance há esta personagem trans do bairro, mais velha, a Margarita. Acha que ela é para a protagonista o que o ato de escrita é para si enquanto escritora?
Que visão bonita, é uma bela ideia. Nunca tinha pensado nesses termos, mas acho que é lindo. Se calhar é. A personagem da Margarita nasceu como uma homenagem a uma geração de mulheres transgénero em Espanha. Foram tão mal-tratadas pela nossa sociedade. Conheci muitas destas mulheres na minha vida. Foram as minhas segundas mães, as minhas mestras, as minhas amigas, as minhas irmãs mais velhas. E a Margarita é uma destilação de todas elas. É uma homenagem a todas essas mulheres, mas é muito bonita essa sugestão que fez. Olhe… é mais uma coisa que aprendi. Pode ter sido uma forma de explorar algo em mim no texto e que o próprio texto faça o papel de Margarita na minha própria vida. Uma maneira de enfrentar questões complicadas.

Como descreveria as diferentes gerações de pessoas trans em Espanha?
Acho que estou numa geração intermédia, entre mundos. Estas mulheres mais velhas tiveram vidas muito difíceis, muito complicadas. Eu também tive. A minha geração tem sido uma geração mal tratada, mas não nesses termos. Vivemos, sobretudo na nossa idade adulta, a partir dos 20, 25 anos, uma mudança de paradigma social e político muito importante em Espanha. Tem havido muita ação política no que diz respeito aos nossos direitos. Acho que tivemos uma adolescência mais parecida com a geração anterior e uma idade adulta mais parecida com a geração seguinte. Creio que, inevitavelmente, as nossas vidas melhoraram. As vidas das mulheres trans mais jovens são melhores do que as nossas em termos sociais, políticos, de visibilidade e de conhecimento da nossa realidade. Mas a nossa posição é muito frágil: custa muito conquistar direitos e custa muito pouco perdê-los. Acho que todas as mulheres trans têm isso em comum.



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