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da paixão ao tabu – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Dez 8, 2024


Por estes dias, há 50 anos, estava a acontecer a primeira ocupação da Reforma Agrária. Foi no Monte do Outeiro, distrito de Beja. Há semanas que nessa herdade se vivia uma tensão crescente pois o proprietário, José Gomes Palma, recusava aceitar como seus trabalhadores os vinte homens que a Comissão Concelhia colocara no Monte do Outeiro.

Sim, tudo começara discreta e burocraticamente meses antes, em Julho, com umas ditas comissões paritárias que na verdade eram controladas pelo PCP, que em cada concelho definiam quanto trabalhadores mais deviam ser empregues em cada herdade. Uma vez definido esse número, os trabalhadores eram mandados para as herdades, com ordenados e funções definidos pelos sindicatos. Ao proprietário das terras restava pagar. É óbvio que se estava perante uma política de emprego intensivo que já não fazia sentido na época e que viria a ser um dos factores responsáveis pelo falhanço da Reforma Agrária que há-de quase quadruplicar o número de trabalhadores. Mas em Dezembro de 74 essa multiplicação arbitrária do número de trabalhadores de cada herdade é ainda e sobretudo uma forma de pressão sobre os proprietários.

No caso de José Gomes Palma a pressão começara logo em Agosto, quando a Comissão colocou mais dois trabalhadores no Monte do Outeiro. O proprietário não aceitou. De Agosto a Novembro, entre providências cautelares e deliberações da Comissão, a tensão cresce. No início de Dezembro a Comissão coloca vinte homens no Monte do Outeiro. A 10 de Dezembro a herdade é ocupada sob o argumento  de que o proprietário estava a descapitalizar a herdade. Ou a pensar fazê-lo.

Traduzindo, Gomes Palma, além do litígio em torno do pagamento dos ordenados, estaria a tratar de vender trigo, lenha e gado. Ou seja, o proprietário, que começara por ter de assegurar vencimentos a um número de trabalhadores que não controlava, vai deixar de poder vender o que é seu. O passo seguinte é ser expropriado das suas terras, o que acontece a 10 de Dezembro de 1974.

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A Herdade do Monte do Outeiro, a par doutras terras de Gomes Palma, vai passar a ser a Cooperativa Vanguarda do Alentejo, uma designação que a História justifica: o que sucedeu nessas terras alastraria depois como uma mancha de óleo nos distritos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal. Nos distritos de Lisboa, Santarém, Faro e Castelo Branco também ocorrem ocupações. No total chegaram a estar ocupados mais de um milhão de hectares, o que equivale a um quarto da terra arável de Portugal, repartidos em 550 cooperativas ou unidades colectivas de produção, em cujos nomes frequentemente se espraiava o imaginário de quem nelas mandava: Estrela Vermelha; Companheiro Vasco; Che Guevara, Fidel Castro… e até uma bizarra Passos de Lenine, que, vá lá saber-se porquê, se representava colocando um busto do líder soviético no meio duma laranjeira junto à qual pastavam umas vacas.

De alguma forma o país folclorizou esse universo de ceifeiras, foices, lenços e tractores, todos sempre inebriados numa espécie de movimento revolucionário perpétuo entre manifestações, assembleias, sessões e mais ocupações. No silêncio ficou o porquê do fracasso dessa reforma que foi inscrita e detalhada em 1976 na Constituição, numa sucessão de artigos que iam desde a “fixação de preços de garantia” (artº 103) até à “expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas” (artº 97). Porque se fala tão pouco hoje da Reforma Agrária? Afinal por ela matou-se e morreu-se. Estava tão ideologicamente blindada que só em Março de 1976 foi debatida na RTP (embora ainda com muitas limitações). Serão o amor do costume ao estatismo e a indulgência de sempre para com os erros da esquerda os responsáveis por esse silêncio? Talvez.

Mas esta espécie de estado de omissão em torno da Reforma Agrária, além de causas, tem consequências. A primeira e mais óbvia é que os mesmos argumentos e os mesmos procedimentos são repetidos com sucesso décadas depois, como agora bem se vê no caso da demagogia em torno da propriedade urbana. Os senhorios são os novos latifundiários. A propriedade urbana substituiu “a terra a quem a trabalha” como alvo político. E mais uma vez assistimos à aplicação da velha receita do estatismo, como se ela fosse a saída óbvia e, pasme-se, adequada e justa.

A segunda consequência leva-nos ao escamotear de algo que é ainda mais danoso que o fracasso económico destas intervenções: o seu impacto social e cultural. Neste sentido vale a pena ouvir e ler a entrevista que António Barreto deu a Maria João Avillez nos podcast Eu estive lá, aqui na Rádio Observador, agora transcrita em livro: “A mitologia da reforma agrária comunista foi muito eficaz durante anos, ainda hoje há quem pense que se tratou de uma reforma com distribuição de terras, com entrega de explorações agrícolas e herdades a que trabalha“. Este ponto é crucial: aquilo a que em Portugal se chamou Reforma Agrária não entregou nada aos trabalhadores, antes pelo contrário, tornou-os funcionários de estruturas burocratizadas e controladas por um partido, o PCP. Passada a euforia inicial muitos desistiram. Como conclui António Barreto: “O comunismo tinha destruído o Alentejo rural (…) já ninguém confiava em ninguém. Faltavam trabalhadores, lavradores, empresários, agricultores, rendeiros, seareiros… Faltava capital. Faltavam máquinas…

50 anos depois já ninguém quer saber das ceifeiras, os trabalhadores rurais agora só são notícia por causa do canto que agora é cante e que se tornou património imaterial. Agora temos os migrantes, a vida justa, a racialização, a casa para viver… enfim, agora, tal como há 50 anos, cumprimos os Passos de Lenine no verdadeiro sentido da palavra.





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