À primeira vista Caroline Darian não identificou a pessoa retratada nas fotografias que lhe eram mostradas pela polícia francesa. “A colcha foi levantada do lado direito para que se pudesse ver o rabo dela de perto. Ela estava a dormir. Achei que estava surpreendentemente pálida e com olheiras”, descreve, referindo-se na terceira pessoa à vítima das imagens que, tudo indicava, tinham sido captadas sem consentimento. O choque não lhe permitiu reconhecer-se, parcialmente nua, nas fotografias tiradas pelo próprio pai, Dominique Pelicot, o homem acusado de drogar e permitir a violação da mulher por cerca de 80 homens durante dez anos.
Numa segunda fotografia, já achou os lençóis vagamente familiares, mas mesmo assim continuava sem se ver ali retratada. “Não, não sou eu”, disse ao agente que conduzia o interrogatório. Só quando este lhe perguntou se tinha um sinal na nádega direita é que teve a certeza que, tal como tinha acontecido com a sua mãe, Gisèle Pelicot, também ela tinha tido a sua privacidade violada pelo próprio pai. A dúvida permanece com ela: Será que também ela foi drogada e vítima de abusos sexuais por parte do pai? E como é que ele a poderia ter fotografado a meio da noite sem a ter acordado?
As revelações de como Caroline Darian vive atormentada com a possibilidade de ter sido vítima daquele que agora chama “progenitor” são feitas no livro que publicou em 2020 Et j’ai cessé de t’appeler papa (E parei de te chamar papá, na tradução livre em português), que será publicado na edição em inglês em dezembro.
Violada 100 vezes por 80 homens a mando do marido. O caso de Gisèle Pelicot que está a chocar França
Dominique Pelicot, atualmente com 71 anos, nega categoricamente alguma vez ter abusado sexualmente da filha. Está, no entanto, acusado do crime de violação da privacidade, já que captou e partilhou imagens dela, que contêm nudez, sem o seu consentimento. Numa pen USB localizado pela polícia, que continha mais de 20 mil fotografias e vídeos de Gisèle Pelicot a ser abusada, uma das pastas intitulava-se “Ao pé da minha filha nua”. Foram estas as fotografias que o agente da polícia mostrou a Caroline Darian e que esta teve dificuldade em reconhecer perante o choque da descoberta e o temor de que também ela viesse a descobrir que tinha sido abusada pelo pai ou outros homens.
Já em relação à mulher, o agressor admitiu, desde a sua detenção, tê-la drogado e abusado sucessivamente. Colocava calmantes na sua bebida e comida e levava homens desconhecidos para a casa de ambos que, quando ela estava completamente inconsciente, abusavam dela e a violavam. Foram identificados 73 homens, entre os 26 e os 74 anos, que se deslocaram à residência dos Pelicot, em Mazan, para cometer as agressões sexuais e filmá-las. Os vídeos eram depois partilhadoss num fórum online com dezenas de outros homens.
No livro de carácter autobiográfico prestes a ser publicado em inglês, Caroline Darian descreve as semanas após a descoberta chocante de que o seu pai drogou e violou a própria mãe durante anos a fio. Num dos capítulos, descreve como Gisèle Pelicot passou por uma fase de negação em relação ao que lhe tinha acontecido. “É insuportável para ela. Ela [Gisèle] tenta convencer-se de que o homem que amou durante tantos anos nem sempre foi um criminoso sexual e tão depravado. Ela está a tentar encontrar circunstâncias atenuantes”, escreveu numa entrada de 14 de dezembro no livro, num excerto citado pelo The Guardian.
Dominique Pelicot foi detido no dia 2 de novembro de 2020, depois de um segurança o ter apanhado a filmar por baixo das saias de mulheres num supermercado local. Na investigação do delito, a polícia encontrou um ficheiro com a designação “abusos” numa pen USB ligada ao seu computador, que continha 20.000 imagens e filmes da sua mulher a ser violada quase 100 vezes ao longo de dez anos.
Nessa altura, em meados de dezembro de 2020, pouco depois da detenção, mãe e filha estiveram perto de entrar em rutura devido à incapacidade de Gisèle Pelicot em acreditar que o marido que considerava “perfeito” e pai dos seus três filhos, tinha cometido uma monstruosidade de tal escala. Anos depois, a principal vítima decidiu avançar com um julgamento público, no tribunal de Avignon, em França, com a intenção de dar uma cara e voz às vítimas de abusos sexuais.
No caso Pélicot, a filha do casal testemunhou contra o pai: “Regressar àquela casa depois da revelação da violência dos factos foi tortura”
No livro, a filha do ex-casal revela como o pai escondeu os medicamentos usados para deixar a mãe inconsciente numa meia dentro de calçado na garagem e de como fez empréstimos em nome da mulher e contraiu “dívidas astronómicas” ao longo dos anos para manter o esquema de abusos sexuais contínuos.
Relata ainda a preocupação frequente de toda a família com o estado de saúde da mãe que passava por períodos inexplicáveis de ausência de memória, sabe-se agora causadas pelos medicamentos utilizados para a deixar inconsciente. Chegaram a desconfiar de Alzheimer, incentivando-a a consultar um neurologista. A filha recorda que Dominique Pelicot menorizava os sintomas e atribuía constantemente estes episódios ao stress e às insónias da mulher.
“Perdi a conta às vezes em que a minha mãe parecia não estar presente. O mais preocupante foi quando ela não se lembrava das nossas conversas de apenas um ou dois dias antes. Como se o cérebro dela estivesse a atualizar-se”, relata Caroline Darian, que tem surgido ao lado da mãe no tribunal durante o julgamento em que o pai arrisca mais de 20 anos de prisão.