Não estava sequer na plateia, mas estava público – como tem sido anormalmente raro nos últimos tempos – e por isso falou. Enquanto o debate seguia no Parlamento, o Presidente da República considerava o Programa do novo Governo “diferente” dos que lhe chegaram as mãos vindos do PS nos últimos anos. “É muito diferente em aspetos fundamentais: a fiscalidade, a economia, matérias sociais e outras”, detalhou quando foi questionado sobre os jornalistas. Mas o que Marcelo acabou por vincar foi que o Programa inclui “medidas urgentes e há uma premência de medidas urgentes”.
Ao mesmo tempo, Marcelo tem uma espécie de desejo nada ocultado. Vê no Programa não só uma linha “mais imediata” de “medidas urgentes, mas também “um mais geral e abstrato para quatro anos”. Mas chegar a essa meta é difícil num Parlamento tão fragmentado, por isso Marcelo avisa já que a cartilha de medidas aprazadas para os próximos meses faz com que “o debate, o diálogo tenha de existir”. Ou isso ou ficará na história como um dos presidentes que, até aqui, mais dissolveu em democracia.
O parceiro que a AD mais pressiona com uma atitude “responsável” – que é como quem diz ‘que não precipite eleições’ – é mesmo o PS. Luís Montenegro entrou mesmo no debate a dizer que ao não viabilizar moções de rejeição, o PS vai permitir vai “permitir a execução do Programa até ao final do mandato ou, no limite, até a aprovação de uma moção de censura”. Uma interpretação abusiva, avisou logo Pedro Nuno Santos que esteve até ao final dos dois dias a fazer declarações para explicar que não é nada disso – e a dada altura até desafiou Montenegro a avançar com uma moção de confiança avisando que, nessa situação, votaria contra. O PS “não quis criar um impasse constitucional que impedisse que, logo a seguir às eleições, o país tivesse um governo em plenas funções”. Mas logo de seguida acrescentou que isto “não pode ser lido como um apoio ao Programa do Governo” e que é o PSD tem de “garantir condições de governação estável”. Pelo meio vai vincado tudo o que separa PS e PSD, dizendo que não são “medidas avulsas” que vão fazer desaparecer esta distância.
Pedro Nuno Santos parece apostado em não deixar colado ao PS o rótulo de força de “bloqueio”, mas também não quer compromissos mais profundos do que para avançar em algumas medidas. Mais do que estar na oposição, o socialista quer ser visto como “alternativa”, se tudo falhar à AD.
Montenegro parece empenhado em levar até às últimas consequências o “não é não”, Ventura não desiste de o contrariar e, depois de o tema do Governo estar arrumado, investe nos desafios ao primeiro-ministro em nome daquilo que diz ser o “prometido” aos portugueses e de uma união das direitas. Do retificativo aos polícias e professores, Ventura dedicou-se a pedir a Montenegro que acelere propostas às quais o Chega já disse que daria luz verde — resta perceber se a promessa se estende ou não se estas mudanças só chegarem no Orçamento do Estado. Luís Montenegro vai-se tentando desviar das balas apontadas por PS e Chega — mais ou menos intencionadas em atirar para o futuro os posicionamentos sobre o próximo Orçamento do Estado — e apesar de, desde a tomada de posse, ter colocado mais peso aos ombros do PS, Montenegro alimenta a ideia de que “aos portugueses não interessa se é Chega ou PS, interessa é ver o seu problema resolvido”.
Deste lado, não há dúvidas: o PCP nem esperou que houvesse programa de Governo para anunciar que iria rejeitá-lo, o Bloco passou semanas a sugerir que faria o mesmo e acabou inclusivamente a apresentar uma moção de rejeição própria. Deste lado do hemiciclo, há total oposição, como se esperaria, ao novo governo da Aliança Democrática e atiram-se acusações sobre este ser um Executivo que governa para a “elite económica” ou que quer criar “ricos, mas não riqueza”. Nas declarações finais de voto, PCP e BE congratularam-se por terem contribuído para “clarificar” as posições dos partidos: os que apoiam claramente o Governo, os que não o fazem e os que, por agora, ficam a meio caminho, fazendo “voz grossa” mas sendo “permissivos” com o novo Executivo. A clarificação está feita e a esquerda terá agora um difícil caminho para fazer, numa altura em que está reduzida a mínimos no Parlamento mas apostada em mostrar que existe “alternativa”.