Em 25 de Março de 2021, o Observador, numa demonstração de fair play que não me canso de realçar, publicou um texto meu, acidamente crítico da cobertura jornalística que o Observador vinha a fazer da epidemia relacionada com a Covid19.
Para minha surpresa, no mesmo dia, no que me pareceu um abuso de posição dominante, Miguel Pinheiro publica uma resposta a esse texto. Infelizmente, o texto de Miguel Pinheiro abundava em processos de intenções e comentários pessoais sobre mim, mas escasseava em contestações aos meus argumentos.
Impossibilitado de agradecer a deferência no local adequado, porque os comentários aos dois textos de opinião tinham sido bloqueados, no mesmo dia 25 de Março de 2021 agradeci a Miguel Pinheiro, no Corta-fitas, o facto de, na minha opinião, ter escrito um texto de opinião que confirmava a minha argumentação sobre a cobertura da Covid19 no jornal e rádio Observador.
Mais de três anos e meio depois, dois relatórios divulgados quase em simultâneo, fizeram-me voltar a esses três textos para avaliar até onde eu tinha sido injusto e pouco rigoroso, e até onde se mantinha a minha ideia de que Miguel Pinheiro estava enganado na forma como olhava para a epidemia e, sobretudo, para a crítica que na altura fiz.
O primeiro desses relatórios saiu há dias, é de uma comissão do Senado dos EUA e não me lembro do Observador ter feito qualquer peça sobre ele. É um relatório muito extenso, com um evidente viés partidário, mas, ainda assim, com muita informação objectiva e verificável que dá indicação de que teria sido útil que a imprensa se tivesse empenhado em ouvir outros pontos de vista sobre a epidemia, para dizer o mínimo.
O segundo relatório é datado de Março de 2024, mas só foi divulgado na passada sexta-feira, e é do departamento de epidemiologia do Instituto Ricardo Jorge, e refere-se ao “Impacte direto e indireto da Pandemia COVID-19 na mortalidade por todas as causas e por causas específicas em Portugal entre março de 2020 e dezembro de 2021”.
A principal conclusão do relatório é impressionantemente semelhante ao que está escrito na Great Barrington Declaration que, na altura, foi ostracizada e até ridicularizada pela generalidade da imprensa, essencialmente porque chamava a atenção para a limitação dos efeitos positivos das medidas não farmacológicas e para a dimensão dos seus efeitos negativos, na gestão de uma epidemia, defendendo a “protecção focalizada”: “Como principais conclusões destacamos que a pandemia de COVID-19 teve um impacte de muito elevada intensidade na mortalidade, principalmente devido às mortes por COVID-19. Estes impactes não foram iguais para toda a população, tendo sido mais intenso nos grupos etários mais idosos e nos indivíduos com doenças crónicas. Tal reforça a necessidade de dar prioridade a estes grupos populacionais na preparação e resposta a futuras pandemias, quer na proteção em relação à infeção e suas complicações, quer na prevenção e mitigação dos efeitos secundários das medidas não farmacológicas”.
Ana Paula Rodrigues, a responsável pelo relatório, já quando era difícil não embarcar na histeria geral, escrevia relatórios de avaliação da mortalidade geral em Portugal, chamando a atenção para coisas que vários jornalistas, estatísticos e outros especialistas que o Observador considerava como detentores da verdade, tendiam a omitir, como aconteceu no lamentável episódio do famoso Natal de 2020.
As minhas dúvidas sobre a forma como a meteorologia estava a ser desconsiderada na explicação para o pico de mortalidade desse período (veja-se o gráfico que consta do relatório para perceber a excepcionalidade desse pico na mortalidade) eram bem justificadas, como se demonstra neste relatório de Junho de 2021: “Todos os estratos relativos a Lisboa apresentaram excessos de mortalidade no período identificado pelo FRIESA mesmo retirando a mortalidade específica de causa COVID-19. Sendo estes excessos temporalmente coincidentes com o período identificado e tendo sido retirados os óbitos por causa específica COVID-19, consideramos que estes excessos são potencialmente associados ao frio extremo”.
Mas antes destes relatórios, até escrevi no Observador sobre isso, logo em Fevereiro de 2021.
Os factos, caro Miguel, os factos são os descritos no relatório em causa, que evidentemente não estava disponível, mas os registos meteorológicos sim, estavam disponíveis praticamente em tempo real: “A análise particular em Lisboa permite concluir que de 30 de Dezembro a 19 de Janeiro as temperaturas mínimas diárias foram inferiores aos valores normais. Identificam-se os dias 27 de Dezembro, 5 e 6 de Janeiro e 12 e 13 de Janeiro com temperatura mínima inferior ao percentil 1 e ainda o dia 18 de Janeiro com temperatura mínima inferior ao percentil 5 (Figura 3.2). O dia 6 de Janeiro foi o que registou a maior diferença para o percentil 1, de -0.9°C”.
O problema do viés da cobertura da imprensa da epidemia, com desconsideração das dúvidas existentes sobre a abordagem maximalista assente em medidas não farmacológicas, não foi a falta de informação, essa estava disponível.
O problema foi a opção editorial de concentrar todas atenções nas medidas não farmacêuticas de gestão da epidemia, sem ponderação e proporcionalidade, atirando para o lixo tudo o que contrariava a ideia central que era perfilhada pelos jornalistas (livre e autonomamente, não porque tivessem uma central de comando e controlo que os obrigasse a fazer o que não queriam, era apenas porque essas eram as suas convicções, a que deram mais relevância que à procura dos factos que as pudessem contrariar).
A pergunta que depois disto tudo gostava de lhe fazer é a seguinte: não seria de seguir o exemplo do senhor Ministro da Educação e pedir uma avaliação externa dessa cobertura da imprensa para perceber que mecanismos de produção de informação levaram a uma cobertura que hoje parece manifestamente inadequada e conivente com os poderes públicos na compressão das liberdades individuais, incluindo a liberdade de expressão?
Ou o jornalismo tornou-se tão corporativo que tem dificuldades em lidar com a avaliação externa do seu trabalho?