A notícia mais preocupante da semana foi sem dúvida a decisão insana de Joe Biden, a escassos dois meses de deixar a Casa Branca, de permitir à Ucrânia o uso de mísseis de médio alcance, levando assim a escalar a guerra para um novo patamar. Uso esse que só pode ser feito quer com os serviços de informação quer com os militares e operacionais americanos. Em mil dias de guerra a solução diplomática de Biden-Blinken foi nula, mas terá certamente engrandecido os conhecimentos do Pentágono sobre o uso de sistemas defensivos contra mísseis, e aumentado exponencialmente a despesa militar e com ela o PIB americano. Sobre a decisão de Biden recomendo quer o artigo de Viriato Soromenho Marques no DN ou de Miguel Sousa Tavares no Expresso, dois comentadores que não alinham acriticamente com a narrativa dominante transatlântica sobre a guerra e com a qual também não me revejo.
Esta semana teremos mais um momento épico, altamente complexo e confuso que é a votação em plenário das mais de duas mil propostas de alteração ao Orçamento de Estado apresentadas pelos partidos políticos. Recordo-me bem deste processo pois na XIII legislatura era Teresa Leal Coelho a Presidente da COFMA e eu Vice-Presidente, alternávamos nesta verdadeira maratona de votações. Lembro-me de ocasiões em que após uma votação, um ou uma deputada pedia para se repetir a votação ou porque não sabia o que estava a ser votado ou porque se tinha enganado na votação. Nessa legislatura as propostas de alteração (PA) já eram muitas, mas não chegavam à enormidade atual que só promove a irracionalidade, a falta de transparência, a confusão e, a reboque, algum descrédito parlamentar. Vou abordar soluções para o problema do particular para o geral.
Na XIII legislatura fez-se uma inovação. Todas as propostas de alteração sobre o mesmo tópico (e.g. IVA, ISP) eram agrupadas em micro-guiões de votação para serem todas votadas sequencialmente por ordem de entrada. Isto evitava três problemas. Primeiro, evitava-se um risco de serem aprovadas propostas contraditórias pois sem esses guiões seriam votadas eventualmente em diferentes dias! Segundo, evitava-se aprovar propostas idênticas! (ao votar a primeira, ficaria prejudicada a segunda votação que já não se faria). Terceiro, evitava-se a manipulação da ordem de voto. Como as PA são votadas por ordem do artigo em que constam na Proposta de Lei (PPL) um partido A que queira que a sua proposta (e.g. PA157) que deu entrada depois da do Partido B (e.g. PA63) sobre o mesmo assunto, pode, em muitas situações, situar a PA157 como proposta de alteração a um artigo (e.g. 25º) pois sabe que o partido B propôs antes a sua PA, mas como proposta de alteração a um artigo posterior (artº 47º). Os micro-guiões são assim extremamente úteis por estas razões, mas deixaram de existir porventura devido ao elevado número de propostas de alteração. Mas isto significa que aqueles problemas regressaram. Seria importante que os deputados definissem ex ante, para os principais tópicos, em que artigo da PPL se situarão as propostas de alterações. Em alternativa, a inteligência artificial generativa pode dar um importante contributo aos serviços de apoio às votações. Quer na identificação de propostas sobre o mesmo tópico, quer na análise da similitude entre as propostas de alteração apresentadas.
Dando agora um passo a montante, como evitar que haja milhares de propostas de alteração? Nem a qualidade do processo orçamental nem a qualidade dos partidos se mede pelo número de propostas de alteração. Diria mesmo que, a partir de certo ponto, a qualidade é inversamente proporcional ao número de propostas apresentadas. Uma forma de reduzir drasticamente o número de PA é o de reduzir o número de “normas cavaleiras” no OE (normas que não têm implicações na receita, na despesa ou no endividamento direto ou contingente do Estado). A necessária alteração à Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), que o Ministro Miranda Sarmento já prometeu que iria fazer, devia dar particular atenção quer à definição do que são normas cavaleiras, quer à sua restrição (em sede de proposta de lei do governo e em sede parlamentar de propostas de alteração). A alteração da LEO deve também rever a forma como os programas orçamentais são definidos que impossibilitam um verdadeiro escrutínio parlamentar das prioridades políticas do governo.
Indo ainda mais a montante, mantendo-nos dentro dos limites constitucionais, vale a pena repensar o âmbito do papel do parlamento nesta divisão de poderes orçamentais entre o executivo e o legislativo. Há muita literatura internacional e alguma nacional (o saudoso Rocha Andrade nos seus “Textos de Finanças Públicas”) que mostra que mesmo só no quadro de regimes parlamentares há uma grande variedade de situações. Desde países em que o parlamento não pode alterar a proposta do executivo, pode aprová-la ou chumbá-la, até países em que essa liberdade é quase total, que é o caso português. Isto pode provocar uma situação paradoxal, do ponto de vista constitucional, que é o governo ter a prerrogativa de apresentar a proposta de lei do OE, logo tendo um papel preponderante no processo orçamental, mas os partidos da oposição poderem subverter completamente essa proposta a todos os níveis: montante da receita, da despesa global e setorial, do saldo orçamental, endividamento etc.
A diversidade de quadros institucionais, incluindo parlamentares e do papel das comissões na apreciação dos OE tem consequências. Que o diga a Suécia que após uma grave financeira, alterou profundamente, e com inegável sucesso, o seu processo orçamental. Também poderemos aprender com a forma como se estrutura bem o parlamento alemão do ponto de vista orçamental. Entre nós a UTAO já fez uma reflexão útil sobre a reforma do processo orçamental, e é bom que outras instituições públicas, nomeadamente o Conselho de Finanças Públicas, ou think tanks da sociedade civil se debrucem sobre este tópico.
Em matéria orçamental a inteligência artificial generativa pode e deverá ajudar, mas esperamos que não seja para substituir a inteligência dos decisores políticos e das pessoas nas entidades responsáveis por acompanhar a elaboração, votação e execução do OE.
PS. Esta semana o Institute of Public Policy – Lisbon, apresentou os resultados do Projeto Budget Watch que analisa a transparência, o rigor e a responsabilidade orçamental e que podem ser consultados em versão resumida aqui. O Relatório foi apresentado no Encontro Fora da Caixa em Viana do Castelo (a partir de 48’20’’)