Garantem que há muita gente que é dali, mas que vive fora, e que faz questão de marcar anualmente as suas férias para a semana da festa para poder ver a procissão. Outros vêm de fora para assistir à tradição. E muitos são os que têm promessas para cumprir a cada dois anos naquela procissão, que, afirmam, ficou em risco devido uma atitude de “quero, posso e mando” adotada pelo sacerdote. Apesar de reconhecerem que uma parte da comunidade, sobretudo composta pelos pescadores de Angeiras, levou a cabo vários protestos contra a decisão do sacerdote, rejeitam que esse clima de tensão tenha tido algo que ver com a morte do padre António Augusto. “Foi na hora em que tinha de ir, não passou de uma coincidência”, comentam.
Durante décadas, a tradição da paróquia de Lavra repetiu-se pacificamente. De dois em dois anos, em agosto, a Festa em Honra de Nossa Senhora de Fátima incluía uma majestosa procissão pelas ruas da povoação, terminando no areal de Angeiras, onde a estátua era colocada junto dos muitos barcos de pesca que fazem daquela praia o seu porto. Os pescadores e as suas famílias agradecem a proteção dada por Maria à pesca, cumprem promessas e renovam as preces que vão passando de geração em geração. O que motivou, então, este ano uma polémica digna de chegar às páginas dos jornais nacionais?
Novamente, é preciso recuar alguns anos para perceber o que se passou. Segundo os relatos feitos por alguns paroquianos ao Observador, a igreja de Lavra, que já tem cerca de 300 anos, estava a atingir um elevado estado de degradação patrimonial, tanto no edifício como na muita arte sacra que existe naquele templo, incluindo a talha dourada que decora o retábulo e as muitas imagens dos santos que os fiéis veneram. Algumas estátuas de madeira tinham bicho, a talha dourada estava já muito danificada e até o chão da igreja precisava de arranjo. Impunha-se um profundo trabalho de restauro que já tinha tido início durante o consulado do anterior pároco.
Em setembro de 2020, chegou à paróquia de Lavra o padre António Augusto Teixeira de Sousa, um missionário dehoniano que já estava ao serviço da diocese do Porto havia alguns anos. Logo nos primeiros meses, quando o novo sacerdote conheceu a realidade da paróquia e os responsáveis dos vários serviços e movimentos lhe apresentaram a necessidade de avançar com trabalhos de restauro, António Augusto decidiu avançar com o projeto. A pandemia atrasou os trabalhos, que decorreram em 2022 e 2023. Na igreja, um dos pontos positivos apontados por uma paroquiana com quem o Observador conversou é justamente a melhoria que foi feita no edifício.
O ponto mais sensível, contudo, prendeu-se com as imagens dos santos. De acordo com o relato de alguns paroquianos, o padre António Augusto chamou um perito restaurador para avaliar as imagens. A conclusão dessa avaliação foi a de que as imagens, de grande valor histórico e artístico, estavam bastante degradadas e precisavam não só de um trabalho de restauro, mas também de uma preservação mais adequada. Uma das recomendações do perito foi mesmo a de que a paróquia seguisse uma prática habitual em vários lugares de culto, inclusivamente no próprio Santuário de Fátima: preservar a imagem original no lugar de exposição ao culto e usar uma outra imagem, mais moderna, para as procissões no exterior.
A decisão de preservar as imagens originais restauradas na igreja (incluindo a de Nossa Senhora de Fátima) e de passar a usar novas imagens nas procissões foi tomada pelo padre depois de consultar o Conselho para os Assuntos Económicos da paróquia. Em maio de 2023, o sacerdote comprou uma nova imagem de Nossa Senhora de Fátima, mais pequena e mais leve, no Santuário de Fátima, para poder ser usada nas procissões daí em diante.
A 13 de maio de 2023, a nova estátua chegou a Lavra. A página de Facebook da paróquia ainda conserva o registo da celebração em que a imagem foi benzida pelo padre António Augusto. Os paroquianos recordam que, nessa ocasião e nas várias missas dessa altura, o padre informou que aquela imagem — que ficaria no centro paroquial — passaria a ser usada em todas as procissões na paróquia. É também isso que se lê na publicação feita pela paróquia na altura: “Esta imagem servirá, a partir de agora, para incorporar todas as procissões em louvor de Nossa Senhora de Fátima. A imagem que se encontra no altar da igreja, manter-se-á no seu lugar para que aí todos a possam louvar.”
Na altura, garantem alguns paroquianos ao Observador, ninguém discordou da decisão do sacerdote. A compra da imagem foi pacífica na paróquia (na página do Facebook, também não há registo de qualquer comentário negativo) e, além disso, foi usada na procissão de velas de maio de 2023, em Lavra. Na ocasião, não houve protestos contra o uso da nova imagem nessa procissão, enquanto a antiga permanecia no seu local de culto, dentro da igreja, garantem os paroquianos.
O problema começou já em 2024, ano de procissão em honra de Nossa Senhora de Fátima até à praia de Angeiras — quando, para a generalidade da paróquia, a ideia de que a nova imagem peregrina seria levada no andor era já um dado adquirido.
No início do ano, entrou em funções uma comissão de festas, composta por representantes dos vários lugares da freguesia, com o objetivo de organizar a festa de agosto e a procissão até à praia de Angeiras. Paroquianos ouvidos pelo Observador garantem que, desde o início, a comissão de festas sabia que seria a nova imagem a ser levada no andor. E é já neste período de trabalho da comissão que começa a circular nas redes sociais, em grupos ligados à paróquia, a ideia de que o padre António Augusto teria proibido subitamente a saída da imagem original de Nossa Senhora de Fátima. Uma primeira publicação deu origem a uma escalada de insultos contra o padre por uma parte da paróquia — um grupo de pessoas que, de acordo com alguns paroquianos ouvidos pelo Observador, não são frequentadores habituais da vida paroquial (o que poderá explicar que não tivessem sabido da aquisição da nova imagem um ano antes), mas são devotos indefectíveis da procissão na praia de Angeiras.
Perante a confusão gerada, que escalou fortemente em poucos dias, o padre António Augusto terá mesmo chegado a organizar uma sessão de esclarecimento na igreja, num domingo de manhã, com a presença dos peritos que tinham avaliado as imagens, para explicar o trabalho de restauro que tinha sido feito, a importância da preservação da imagem e a decisão de manter a estátua original em permanência dentro da igreja.