Não é assim “que se calam as vozes dissonantes, antes pelo contrário”, escreve num texto o escritor moçambicano Nelson Saúte num texto enviado ao Observador. O autor reage assim ao atropelamento de uma jovem que se manifestava pacificamente no meio de uma das principais avenidas de Maputo, esta quarta-feira de manhã.
“No meio da Eduardo Mondlane estão os desprezados. Eles impedem que os carros transitem e ocupam determinados o asfalto. Muitos são oriundos do outro lado da fronteira, onde a fome e a miséria fazem a sua ignóbil condição. Estão rebelados. Erguem cartazes. Têm apitos. Estão obstinados na sua luta”, descreve Nelson Saúte antes de recordar o que se passa a seguir.
“Um BTR [carro blindado soviético] abre alas sem estrépito. Segue-se-lhe um outro, numa velocidade enraivecida. As suas rodas impenitentes sobre uma das jovens manifestantes. Aquele BTR voa na direcção da sua ignomínia e ignora no chão uma vida destroçada”, conta para logo a seguir deixar um aviso:
Não se calam assim as vozes dissonantes, antes pelo contrário. Assim se justifica a sua veemência e premência. Perante este ou outros semelhantes e sórdidos atos, o silêncio torna-se cúmplice destes crimes e anuncia que entre nós foi derrotada a humanidade. Estamos de costas voltadas e já não temos empatia”.
O escritor termina o seu texto sublinhando que “nada, porém, justifica a barbárie. A barbárie no seu esplendor. A irracionalidade. A bestialidade. A incivilidade”.
Protestos paralisam centro de Maputo. Tensão entre manifestantes e polícia cresce após carro blindado atropelar mulher
As Forças Armadas de Moçambique assumiram que o carro blindado “atropelou acidentalmente uma cidadã” quando estava “em missão de proteção de objetos económicos essenciais, limpeza e desbloqueio das vias de circulação, no âmbito das manifestações pós-eleitorais”. Em nota de imprensa divulgada pelo Ministério da Defesa de Moçambique esclarecem que “a viatura devidamente caraterizada (…) fazia parte de uma coluna militar devidamente sinalizada”.
No comunicado informam ainda que a vítima foi “prontamente socorrida” no Hospital Central de Maputo, onde está a receber tratamento hospitalar “adequado”. Nada diz sobre o seu quadro clínico, mas uma fonte familiar referiu à agência Lusa que o seu estado de saúde é grave.
O atropelamento mudou o rumo dos protestos, que até aí decorriam pacificamente, com manifestantes a cortarem o trânsito nas principais avenidas de Maputo. A partir desse momento os manifestantes passaram a apedrejar os carros dos polícias e dos militares, com as forças de segurança a responderem com gás lacrimogéneo e balas verdadeiras, testemunharam os jornalistas das agências de notícias Lusa e AFP.
Este foi o primeiro dia dos novos protestos convocados por Venâncio Mondlane, o candidato presidencial que contesta os resultados eleitorais de 9 de outubro que dão a vitória com mais de 70% ao candidato da Frelimo, o partido no poder há 49 anos.
Venâncio Mondlane pede carros parados com cartazes nas ruas de Moçambique