Em 1837, Hans Christian Andersen publicou uma história em que dois alfaiates vigaristas enganaram um rei, a sua corte e o seu povo com vestes faustosas, unicamente visíveis por pessoas inteligentes. Depois de inúmeras atitudes manipuladoras, acabaram por ser desmascarados por uma criança que, no meio dum desfile, a todos alertou que o rei ia nu. O que nos sugere que a forma como acabamos por nos deixar manejar, falsear e, até, intimidar pela vaidade de alguns (a ponto de não só não os contrariarmos como, sobretudo, nos alinharmos com ela de forma a não termos da sua parte nem rancores nem represálias por despeito) não é de agora. Sempre existiu.
O narcisismo não foi inventado no século XIX. Nem no século XIV, considerando o original espanhol que terá dado origem a esta história. É indissociável da natureza humana! Talvez porque ele exista, no essencial, como defesa contra o desamparo. E contra a vergonha. Quanto mais as pessoas se refugiam no narcisismo mais sozinhas se sentem. Quanto menos fazem por se pensar com verdade, menos orgulhosas de si acabam por ser.
Fazermos por ser admirados ou adorados esconde o modo como nos sentimos mal amados. Fazer por não pensar no que nos envergonha (mesmo que sejam as pequenas incongruências que se acumulam nos nossos gestos de todos os dias) cria fingimentos. Que se colam à pele. Dos quais, todavia, não nos desligamos. Tudo para não tomarmos contacto com partes feias de nós. No final da linha, o narcisismo acaba por ser uma defesa contra a depressão. Não é uma resposta impulsiva. Move-se, de forma calculada, por fobia da verdade. Como se ela – em vez de nos trazer à reconciliação connosco, com a vida e com as pessoas – nos remetesse para grilhões sombrios que nos corroessem, nos carcomissem ou nos levassem a desmoronar.
De que são feitas as vestes faustosas de que o narcisismo parece só vestir os outros?
Um narcísico é um auto-didacta de si mesmo. Um verdadeiro self made man.
Um narcísico nunca adia para amanhã o que pode fazer depois de amanhã. Engonha. E é um procrastinador, por excelência.
Um narcísico nunca é bem quem é. Compõe um perfil. Ancorado nas máximas do momento. Como o optimismo, a positividade, a saúde mental, a felicidade ou a comunicação.
Um narcísico fala de vinculação a torto e a direito. Mas imagina-a como co-dependência. Em relação à qual é contra.
Um narcísico é exímio no culto da superficialidade. E usa-a como evasão em relação ao auto-conhecimento.
Um narcísico tão depressa cria uma intimidade instantânea como, a seguir, é perito na arte de fugir ao compromisso.
Nas histórias de um narcísico, a auto glorificação pesa tanto como a sua fobia diante do fracasso e da perda.
Para um narcísico, tristeza é escassez. Fraqueza. E fragilidade. Já o bem-estar instantâneo é sinónimo de felicidade.
Para um narcísico, autoridade convida à obediência ou à submissão. E nunca à lealdade, à sabedoria ou ao sentido de justiça. Daí que um narcísico prefira a permissividade. Por mais que adore o poder.
Um narcísico vive cada momento como se não houvesse amanhã. Para um narcísico o passado é um condicionamento que tolhe e atrofia. E o futuro uma ilusão que pode esperar.
Um narcísico confunde a notoriedade com a admiração. E fala com uma intimidade contagiante das emoções. Por mais que seja contra a espontaneidade com que elas, todavia, se expressam…
Para um narcísico, a simpatia é uma atitude vulgar. E a afabilidade tem qualquer coisa de submisso. É por isso que um narcísico prefere a assertividade à autenticidade.
Para um narcísico, a diversão está à frente do desejo. Até porque reconhecer um sonho ou o desejo remete para a pequenez humana de não se poder ter tudo! O que se torna intolerável para quem se constrói por perfis. Em vez de se olhar de frente, com olhos de ver.
Um narcísico inebria-se com o controle. Vive-o, aliás, com glamour. Como se o furor do controle se aproximasse duma aragem de omnipotência que tanto o seduz.
Porque transformar-se seria reconhecer que pode ser melhor, um narcísico procura na saúde mental o elixir da juventude. Sob a forma de pensos rápidos. Ou de soluções unânimes para problemas particulares. Tudo em nome de mais controle; ainda. Sempre na esperança que um tutorial, o coachting, um técnica de relaxamento (com que desintoxique o que não pensa com o modo como se respira) ou um aconselhamento descontextualizado tragam astúcia à verdade. E o encaminhem para a apoteose do que é capaz.
Um narcisíco é um herói solitário. Um fingidor. Ele é o síndrome do impostor em pessoa. Sofre por antecipação. E chega a fingir que é vítima da dor que deveras sente.
Um narcísico prefere a sua afirmação à intimidade. O histerismo ao entusiasmo. E a euforia à alegria. Porque tudo o que não dependa só de si torna insustentável a leveza do ser.
Talvez seja por isso que um narcísico seja mais amigo da pulsão de morte que da de vida. Porque se estar em paz é ter alinhado aquilo que se sente, com aquilo se é e com tudo o que se dá, viver daquilo que se mostra exige que não se comova, que só se racionalize e que não se sinta.
Um narcísico não funciona segundo o princípio do prazer. Porque o prazer é uma experiência de comunhão com aquilo que se sente e com outra pessoa. E isso lhe traz o medo de se tornar frágil. Ou de ficar dependente. É por isso que, em vez do prazer, um narcisico aspira a Nirvana. Procura reduzir a zero a ansiedade. Eliminar o conflito. Ou banir a tristeza.
Um narcísico nunca pede desculpa. Só (se) lamenta.
Um narcísico é um verdadeiro hiperactivo. Para não reflectir, foge para a frente. É por isso que passa a vida a dizer que precisa de parar para pensar. E a utilizar o narcisismo como Photoshop para a consciência de si.
É por tudo isto que o narcisismo impede – a uns, aos bocadinhos; a outros, para lá do que seria razoável – a inteligência de ver que estamos nus.
O narcisismo não é um ideal do eu. Mas um eu ideal. Isto é, sempre que temos dificuldade em aspirar a sermos melhores alimentamo-nos com a ilusão de já sermos grandes. E um narcísico é assim.
É destas “vestes faustosas”, que só os inteligentes são capazes de admirar, que se faz, nos tempos que correm, o narcisismo. Que, uns mais do que outros, todos consumimos. Acresce que as redes sociais nos inundaram duma “cultura do narcisismo”. Como uma espécie de pandemia que se estende à política, ao desporto ou à cultura. Tudo roda em torno da visibilidade, da notoriedade e da vaidade. Ao mesmo que nos atola em episódios descartáveis – afrontas, tragédias, historietas, sarcasmos, coscuvilhices ou paródias – que nos distraem e atrofiam de reels e de posts com défices de atenção. E nos tornam indiferentes à relação e à verdade.
Vivemos em democracias de espelhos mágicos. Que nos tornam mais feios. E, por inerência, menos humanos. Sem história. E sem futuro. Em que bons são os outros. E maus, sempre, os outros.
Não, por mais que pareça, não é a história que se repete. É esta tendência para escorregarmos para a prestidigitação com que, ciclicamente, da mesma maneira, ao longo dos tempos, fugimos à verdade. Nós compactuamos com os alfaiates que influenciam. E somos os súbditos que os seguem.
No próximo ano, se o mundo for por esta cultura narcísica adiante, vamos continuar a não afrontar os tiranos para que, despeitados, não espalhem sobre nós o seu rancor. E a condescender com os mentirosos, assim as suas mentiras não nos atinjam. E a conviver com as faltas à verdade, com esperança que ninguém as valorize e as anote. E a olhar para os outros! Mais do que a olhar por nós.
Entretanto, porque mais narcisismo é menos humanidade, o mundo vai-se emplumando com vestes só acessíveis à visão dos inteligentes. Aparentemente, ninguém vai nu. Enquanto isso, o narcisismo polvilha o mundo de sabichões e de sabidos. A clarividência, essa, fica ao alcance das crianças. E daqueles que, como células de resistência, em nome da inteligência natural e procurando a sabedoria, tentam ser só um bocadinho melhores. Menos faustosos. E mais bonitos. Todos os dias.
Desejo-lhe que seja um deles!
Feliz Ano Novo!