Vitorino Salomé lançou esta sexta-feira, 19 de abril, o seu novo álbum, Não sei do que é que se trata, mas não concordo! O título é o regresso a uma atitude eternamente inconformada, um espírito jovial de um músico com quase 82 anos, nascido e criado no seio de uma família musical e contestatária, no Alentejo profundo, a partir do qual haveria de descobrir o mundo.
Assistiu à transformação da sociedade ocidental quando se mudou para Paris em 1968, naquele que foi um ponto de viragem de dimensão internacional. Cantava nas ruas para fazer dinheiro, já envolvido com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Fausto e Sérgio Godinho.
Haveria de se tornar parte da formação ao vivo de Zeca Afonso, com o qual percorreu o país em ações clandestinas, até se dar a tão esperada madrugada do 25 de Abril de 1974. Vitorino preparava o seu primeiro disco, que haveria de ser lançado em Paris, mas com a revolução não mais voltou à capital francesa.
Viveu os tempos quentes do PREC, lançou em 1975 o seu primeiro álbum, logo com a versão de “Menina Estás à Janela”, e foi um dos músicos daquela geração que revisitaram as raízes musicais portuguesas para as transformar noutras coisas, na época da Reforma Agrária, em que o mundo rural fervilhava e em que estas canções se tornavam a banda sonora de uma revolução. Ao longo dos anos, atuou pelo mundo, colaborou com inúmeros artistas, gravou dezenas de projetos, tornou-se cada vez mais uma referência nacional.
A menos de dois meses de completar 82 anos, não dá sinais de abrandamento. Prepara-se para fazer uma série de concertos: o primeiro realizou-se esta sexta-feira no Fórum Luísa Todi, em Setúbal. A poucos dias do 50.º aniversário do 25 de Abril, entrevistámos Vitorino sobre o seu novo álbum, as suas memórias da ditadura e da revolução e o momento social e político que hoje vivemos.
[“Não sei do que é que se trata, mas não concordo”, a canção que dá título ao novo álbum de Vitorino”:]
Como é que começou a pensar neste álbum e como é que se deu a coincidência — que não será por acaso — de ele sair no mês em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril?
Este álbum era para ter saído em 2020. Chegou a pandemia e atrasou-me quase quatro anos. De maneira que tive que renovar algumas sonoridades, retirei algumas canções e substituí por outras. Mas é um álbum fresco, está a sair do forno. Sabe, para mim, a preguiça é um hobby. E vou fazendo as coisas, com o tempo que me é confortável, e calhou em cima do cinquentenário do 25 de Abril. Ótimo.
O disco teve um pontapé de partida? O que é que desejava que ele tivesse quando começou a trabalhar nele?
Não tenho pontos de partida. O ponto de partida é uma canção. Os meus discos são mantas de retalhos, de propósito. E um disco é sempre completamente diferente do anterior. Por vezes é mesmo o antípoda, sobretudo na estética, e até nas capas. E ao partir de uma canção vou andando por aí. O caminhante não tem um caminho, o caminho faz-se a andar. É uma frase do Antonio Machado, um grande poeta espanhol.
Agora que o caminho deste disco está feito, numa fase em que pode olhar para trás e pensar nessa jornada, como é que descreveria o caminho deste álbum, até por oposição aos outros que fez ao longo da sua carreira?
O caminho fez-se mesmo a andar. Depois, por exemplo, apareceu o meu amigo António Lobo Antunes, há dois ou três anos, que me disse: tenho aqui 10 canções, vê lá. Ele dava-me aos punhados. E eu escolhi uma, que tem um texto lindíssimo e que foi título de um livro dele: Não é Meia Noite Quem Quer. Depois também me apareceu outro amigo — a minha música tem muito a ver com textos de amigos com quem tenho muita intimidade —, o Carlos Mota de Oliveira, com Uma Pontinha Por Ti, que é um texto maravilhoso e muito suave. De resto, os textos são quase todos meus — mas também passo por um texto da Florbela Espanca, poeta que me é muito querida e que, quando casou, foi viver para a vila do Redondo, de onde eu sou. Há uma grande ligação por causa disso, sempre foi uma inspiração. Segundo filhas de uma pessoa que a conheceu muito bem, ela andava de calças e fumava. Isto nos anos 30, numa vila alentejana profunda, era um fenómeno.
Normalmente, os textos originam as composições musicais? Ou por vezes é ao contrário?
Eu faço ao contrário, e às vezes ao mesmo tempo. Se formos ver, tudo o que dizemos pode ter música, se for preciso. O processo criativo não tem explicação, é escusado. Ou é um anjo que desce, ou são gnomos ou alguma andorinha. Mas o que aparece aparece e nós não fazemos esforço. Concentramo-nos um bocadinho na coisa e ela vem. E tenho uma vantagem, porque toco vagamente piano e o piano ensina-nos a tocar e a fazer canções. Tem lá as notas todas. O piano fornece e aquele é meu amigo.
Tem alguma espécie de rotina criativa?
Nada. Pratico o vagar. É ter vagar, ter tempo. Quando posso. Agora, por exemplo, ando numa lufa-lufa de entrevistas e concertos que começam nos próximos dias. São logo sete de seguida. De maneira que estou tramado. A minha preguiça não vai ser praticada.