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Grupos de ONG querem transformar incitamento ao ódio em crime público – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Jun 16, 2024

O SOS Racismo associou-se a outras organizações para transformar em crime público a discriminação e incitamento ao ódio e à violência, uma iniciativa cidadã que pretende alargar a esfera do artigo do Código Penal.

Atualmente, só é crime, segundo o Código Penal, quando o autor utiliza um “meio destinado à divulgação” o que, para a dirigente do SOS Racismo Joana Cabral, é “muito pouco consequente”, porque “há atos em contexto pessoal” que devem ser considerados criminais.

“O discurso de ódio deve ser crime sempre”, independentemente “do meio em que é expresso”, afirmou a dirigente, criticando o facto de, nalguns casos, a legislação contemplar apenas contraordenações.

Falando à Lusa por ocasião do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, que se comemora na terça-feira, Joana Cabral considerou que o “enquadramento legal atual não é suficientemente consequente do ponto de vista da aplicação” de penas efetivas.

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Nesse sentido, o SOS Racismo está “envolvido numa iniciativa legislativa cidadã que pretende precisamente atuar do ponto de vista do discurso de ódio, com um enquadramento mais eficaz e mais dissuasor” que “não pode estar apenas ao nível da contraordenação” em muitos casos ou sujeito a queixas particulares, já que se trata, atualmente, de um crime semipúblico.

“O que vamos percebendo é que, muitas vezes, a penalização dos comportamentos de ódio, de racismo, de xenofobia e que incluem o discurso de ódio online não têm consequências que sejam dissuasoras para o futuro”, acrescentou, admitindo que esta proposta pode ser vista pelos críticos como um ataque à liberdade individual, algo que nega.

“Nós levamos muito a sério a liberdade de expressão, ela é muito necessária, precisamos dela não só para podermos viver com liberdade, mas também porque essa liberdade protege a democracia, protege direitos e a possibilidade de haver contraditório”, disse Joana Cabral.

No entanto, “nenhum direito, a não ser o direito à vida, é absoluto e os direitos têm que conviver dentro de uma sociedade”, porque a liberdade de expressão “não pode agredir o Outro” e utilizar um “discurso tão ofensivo que atenta contra dignidade e contra a saúde mental” das vítimas.

Por outro lado, a regulação desta matéria permite “desmontar aquilo que pode ser a fabricação de notícias falsas de desinformação, porque também isso é um atentado à democracia”, acrescentou.

Nesta questão, “há conflitos entre direitos” e “qual é que vale mais? questionou Joana Cabral, respondendo logo de seguida: “não podemos priorizar apenas o direito que as pessoas têm de expressar a sua liberdade”, mas também “temos de proteger os direitos de quem é atingido”.

Por outro lado, caso não seja controlado, o “discurso de ódio contamina o clima social e a conflitualidade entre os grupos”, pelo que a lei deve prever sempre um papel de dissuasor de futuros comportamentos.

Os insultos online contra minorias, comportamentos sexuais ou etnias “tendem a ter uma normalização fora da rede”, que podem terminar em “atitudes que são muito violentas” na vida real.

Os promotores da iniciativa tendem a considerar que a “pena de prisão não é a melhor forma de atuar perante um crime” desta natureza, mas deve ser dissuasora de comportamentos.

A moldura deve ter também “um efeito simbólico para enquadrar com a devida proporção um crime que tem consequências graves na vida das pessoas” que são vítimas.

O facto de penas mais elevadas serem raramente aplicadas cria a ideia de “alguma inimputabilidade” em quem comete o crime, salientou ainda a dirigente do SOS Racismo.

Os advogados Francisco Teixeira da Mota e Leonor Caldeira criticam o possível agravamento penal do incitamento ao ódio, algo que é proposto por um grupo de ONG, que pedem a sua transformação em crime público.

“Não vejo necessidade de mais regulamentação legal” do artigo 240 do Código Penal, afirmou à Lusa Francisco Teixeira da Mota, que se mostra, pelo contrário, preocupado com a falta de tolerância na sociedade para quem pensa de modo diferente.

“Mais do que preocupar-me com o discurso de ódio, preocupa-me o ódio ao discurso”, afirmou, referindo-se ao “excesso de combate” a quem pensa de outro modo.

“O discurso de ódio não pode ser entendido como pretender, censurar ou impedir que as pessoas sejam desagradáveis, sejam injustas, sejam estúpidas, sejam ordinárias. Isso incomoda-me porque entramos num campo de censura que é grave”, afirmou o autor do livro “A liberdade de expressão em tribunal”, entre outras obras sobre o tema.

No seu entender, o “discurso de ódio tem de ser entendido só quando há um incitamento à violência inequívoca, um incitamento com um risco real ou que as afirmações ponham em causa a dignidade da pessoa visada ou do grupo visado”.

Falando à Lusa por ocasião do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, que se comemora na terça-feira, o advogado salientou que “uma pessoa pode ter uma opinião racista, mas isso não é necessariamente discurso de ódio”.

Por seu turno, a advogada Leonor Caldeira, que defendeu uma família do Bairro da Jamaica contra o líder do Chega por ofensas ao direito à honra em 2021, também discorda do aumento da moldura penal daquele crime: “Isso é usar o Código Penal como uma arma de arremesso”.

O “crime deve ser reservado para uma coisa de uma gravidade especial” e “há um espetro de coisas que são racistas, que são discriminatórias, que são classistas”, mas que devem ser combatidas de “outra forma que não a via criminal ou sequer a via judicial”, considerou.

Como exemplo, referiu que “dentro do racismo há coisas mais leves, há microagressões, discriminações, olhares ou comentários desagradáveis, mas depois há coisas do género Bruno Candé, que é um homicídio motivado por ódio racial”.

No entanto, Leonor Caldeira admitiu que o racismo ou o discurso de ódio pode ser uma agravante para outro crime, como agressões ou mesmo homicídios.

“Toda a gente em Portugal tem um viés racista, uns mais, outros menos, mas isso é uma coisa com a qual nós vamos ter que lidar e vamos ter primeiro que aprender a identificá-lo e depois desconstruir e educar as novas gerações”, mas “eu tenho muitas dúvidas que isso se faça pela condenação de crimes e pela aplicação de penas”, defendeu.

Pelo contrário, o combate ao racismo deve ser feito noutros planos sociais.

“Muitas vezes os tribunais têm essa dificuldade, não se querem meter nisso”, disse, recordando o seu caso. No seu entender, o racismo estava subjacente às afirmações de André Ventura sobre a família Coxi que representou, apelidando-os de “bandidos”, mas isso não foi tido em conta pela justiça.

“Eu vim com uma ação cível e tinha um pedido para que o Tribunal reconhecesse que era uma ofensa à honra”, que incluía questões de racismo, recordou.

Neste caso, “era a uma discriminação em função da cor da pele e eu até usei um artifício para não usar a palavra racismo e não assustar o tribunal”, mas, mesmo assim, o juiz “recusou-se a reconhecer isso” na condenação.

“As discriminações já estão subsumidas no ilícito, é uma coisa meio tímida, meio envergonhada, e não se querem comprometer, não querem dizer as coisas como elas são e isso é um problema”, lamentou a advogada.

Contudo, Leonor Caldeira insistiu que há também um combate intelectual que deve ser feito ao racismo, ainda antes das ações judiciais, dando o exemplo do processo que o SOS Racismo tentou, sem sucesso, contra a historiadora Fátima Bonifácio.

“Há coisas que são mais leves e que estão dentro de um exercício intelectual que, embora seja racista, é um exercício intelectual, como, por exemplo, foi o caso da crónica da Fátima Bonifácio no Público”, precisou.

Acrescentou ainda que não subscreve as ideias racistas da Fátima Bonifácio”, mas o “que deve ser atacado é o mérito das ideias” e não avançar-se para uma criminalização.

O advogado António Garcia Pereira considera que deve ser público o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, para apoiar as vítimas a avançarem com ações judiciais.

“Não sou propriamente muito adepto do reforço de incriminações penais”, mas “acho que, naqueles casos em que a situação das vítimas é particularmente indefesa”, é necessário que o enquadramento legal mude, afirmou à Lusa Garcia Pereira.

O advogado foi o responsável pelo caso que levou à condenação, em primeira instância do militante neonazi Mário Machado a dois anos e 10 meses de prisão efetiva por incitamento ao ódio e à violência contra mulheres de esquerda em publicações nas redes sociais.

Em causa estavam mensagens publicadas no então Twitter atribuídas a Mário Machado e Ricardo Pais em que estes apelavam para a “prostituição forçada” das mulheres dos partidos de esquerda, e que visaram em particular a professora e dirigente do Movimento Alternativa Socialista (MAS) Renata Cambra.

Neste tipo de casos, “para que a ação penal se possa desenvolver, é necessário um impulso processual que muitas vezes a vítima não está em condições de exercer e depois de manter” nos tribunais, afirmou o advogado, comparando a violação com o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

“Muitas vezes as vítimas de violação não apresentam queixa-crime e, portanto, o número de processos ou o número de queixas é uma pequena minoria relativamente à grande maioria dos casos, deixando impunes os autores dos crimes mais infames”, explicou.

No caso dos “crimes de ódio, sobretudo quando são proferidos por quem já mostrou ter capacidade de organização e de prática de atos violentos, de agressão e de intimidação”, deveria “ser ponderada seriamente a hipótese do crime ser público”, disse o jurista à Lusa, por ocasião do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, que se comemora na terça-feira.

Várias ONG, entre as quais o SOS Racismo, estão a promover uma iniciativa para transformar a discriminação e incitamento ao ódio e à violência em crime público, sem necessitar de uma queixa inicial.

No caso que moveu contra Mário Machado, em representação de Renata Cambra, esse problema não se colocou, mas existem “outros casos em que as vítimas se sentem coagidas, se sentem amedrontadas por aquilo que possa ser feito pelos autores desse tipo de ilícitos e acabam por não desencadear um procedimento criminal”.

Contudo, o advogado admite que esta alteração legal tem o risco de poder ser visto como “tentativas de silenciamento daquilo que não são mais do que vozes discordantes”, relacionadas com “diferenças de opinião”.

E deu o exemplo recente de quem critica a política de combate à pandemia da Covid-19 ou a Ucrânia na guerra com a Rússia, “apelidados de tudo” pelo “pensamento dominante” da sociedade.

“Aí nós não estamos a falar em nada de crime de ódio, mas era assim que era apresentado”, salientou Garcia Pereira, que se mostrou também contra uma “jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” que permite às “pessoas publicamente expostas que possa dizer tudo e mais alguma coisa” em nome da liberdade de expressão.

O advogado sustentou que Portugal tem “uma justiça cara e que é frequentemente lenta e ineficaz”, contribuindo tudo isto para que “as vítimas se sintam desencorajadas de mover um processo-crime”, mesmo que, no caso do incitamento ao ódio, a “moldura penal seja pesada” no Código Penal.

No entanto, salientou, “a pena efetivamente aplicada não é suficientemente dura para significar um aviso sério ou um fator de dissuasão”.

Segundo o Código Penal, “quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação”, “difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica” ou “incitar à violência ou ao ódio” contra este tipo de vítimas incorre numa pena de prisão de seis meses a cinco anos.



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