• Sex. Dez 13th, 2024

Feijoada Politica

Notícias

Ilhas de gentileza – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Dez 13, 2024

Como deparar na cidade ilhas de gentileza, neste tempo de acrimónia, em que a própria cidade ganha cara de gente, e nos acolhe ou repele, dependendo do lugar de onde viemos? Procuro e escavo por essas ilhas, ao mesmo tempo, difíceis de encontrar e à distância de uma troca de olhares ou sorrisos.
A hospitalidade de um lugar está, contra todas as evidências em contrário, contida nessa rede invisível de gestos humanos benignos, hoje revolucionários. Não se pode esperar de um lugar que seja hospitaleiro, excepto em relação às pessoas que nele habitam. A hospitalidade não é o gás que respiramos, mas uma tapeçaria de intenções e acções muitas vezes imperceptíveis. A hospitalidade somos nós que a fazemos nos gestos para com aqueles com quem nos cruzamos ou nos são próximos.
Podemos falar, por isso, da hospitalidade das cidades e das nações, mas também da hospitalidade advinda da proximidade, por meio da qual fazemos por abrir a porta quando nela batem, primeiro, aqueles que conhecemos, depois, aqueles que ainda não conhecemos bem, até sermos capazes de a abrir aos estranhos.
Se outros falaram e definiram as agressões menores, tentando definir como corroem e minam a igualdade e, também, a paz interior de quem as sofre, interessam-me as bondades menores, pelas quais se perdeu todo o interesse. Parto para a rua sem muita esperança de dar com elas, as caras, os olhares, o modo como a cidade expulsa tantos por tornar impossível que nela possam esperar viver, em lado algum encontro sinais de esperança, mas, pelo contrário, o convite a que me renda à maneira malévola de viver que consiste em cultivar a hostilidade.
Creio que começou com a pandemia a loucura dos canais de notícias, a actualização torrencial, segundo a segundo, a aceleração do tempo para padrões impossíveis de acompanhar, que nos tem presas de uma ansiedade palpitante. Não sei que ligação existe entre essa ansiedade e o modo como a busca por ilhas de gentileza parece destinada ao fracasso. Associo no tempo uma coisa à outra, mas talvez seja impressão minha.
Sou chamada a pairar sobre o odioso, se quiser ser feliz, a afirmar para comigo, com um orgulho silencioso e benigno, que não sei, que não vi, que não li, a praticar a bondade de que sou capaz, sem esperar ser notada, e do mesmo modo impassível e decidido como Elizabeth Eckford entrou no liceu, no Arkansas, agarrada ao seu caderno. Alguns acharão cobardia. Para mim, é o acto político desperto por excelência, no tempo em que vivemos.
Pairante, sou um corpo que vejo, sei e sinto, mas pairo como quem ascende na cegueira, porque sei que não vou sozinha.
Os anos tornam difícil este exercício de voo, sinto que é como andar sem ver onde ponho os pés, parece-se com voar sem ver onde aterro. Mas, de outro modo, não conseguiria sequer começar a tentar, em 2024, passar os meus dias a escrever sobre os outros.
Dou conta da forma como a maldade é infatigável e industriosa e se desmultiplica em iniciativas enérgicas. A gentileza é apanágio dos fracos e dos frouxos, ou é qualidade sua ser preguiçosa, não sei bem. É quase ridículo dizer isto hoje, ou, como disse Wittgenstein num prefácio famoso, hoje ninguém me leva a sério ao dizer isto, mas ando à procura do amor, da verdade e da beleza na cidade suja.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR





Source link

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *