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Liberdade não tem mas – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Abr 23, 2024

É uma daquelas raridades a que não estamos habituados. Pedro Passos Coelho, no podcast de Maria João Avillez, falou sobre os anos da troika, expôs a sua visão, fez notar divergências, enfim, exerceu a sua liberdade. Paulo Portas respondeu a várias das afirmações do ex-Primeiro-ministro e expôs a sua visão, afirmando que via a troika como um mal necessário ao passo que Passos Coelho a entendia como um bem virtuoso. E fê-lo, naturalmente, também de forma livre.

Não me compete, por variadíssimas razões, julgar as duas opiniões. Na verdade, saber quem tem razão, neste caso em particular, é até de uma irrelevância só capaz de excitar o jornalismo mais incapaz. O que Passos, primeiro, e Portas, depois, fizeram foi um exercício de liberdade e de respeito pela memória histórica. De resto, as duas visões, aparentemente contraditórias, não o eram tanto assim, ou pelo menos visavam objectivos semelhantes, já que, com mais ou menos dificuldades, o processo de ajustamento financeiro foi concluído, o Governo chegou ao fim do seu mandato e a coligação entre os partidos que ambos lideravam até conseguiu ser a força mais votada nas eleições seguintes – embora esse resultado se tenha traduzido numa maioria de esquerda, num movimento de que a direita ainda não recuperou totalmente.

Ambos falaram sem rodeios e, de forma quase inédita em Portugal, contribuíram para um desenho da História que deve ser feita com a memória fresca, e, ao contrário do que entre nós é mais habitual, não colocaram num túmulo as percepções, as opiniões e os factos. A grande vantagem de se falar da História recente (ou recentíssima, como é o caso) com todos os intervenientes vivíssimos da silva é precisamente esta: os factos podem ser oferecidos ao futuro acompanhados das devidas visões sobre os mesmos, para que os cidadãos do futuro possam julgar os factos objectivos do passado com as diversas perspectivas subjectivas diante dos olhos e aí, então, tirar as conclusões que entenderem.

O nosso hábito tem sido, infelizmente, mais o de fazer com que saia vitoriosa uma das narrativas em combate, para que dela seja cristalizado, então, um facto incontornável. Ora, os factos stricto sensu não podem ser ignorados, mas a História, a política e a sociedade são mais do que factos. Como escreveu em tempos Lucas Pires, o regime onde só há factos é uma ditadura.

Sucede que as democracias modernas, de forma inorgânica e social, têm feito um caminho perigoso no sentido dos factos absolutos, em detrimento da liberdade de opinião e de expressão, por exemplo. Foi também esse o caso em que se viu envolvido o mais recente «livro negro», o tal apresentado por Pedro Passos Coelho. A velocidade pós-moderna a que circulamos já colocou Identidade e Família num arquivador histórico, mas talvez valha a pena aqui regressar não ao livro, mas às reacções que o mesmo suscitou. Se é certo que uma coisa é o conteúdo de cada um daqueles textos, analisado de forma individual, também é certo que outra coisa é o direito a que tenham sido escritos e possam ser lidos. Uma coisa é criticar substantivamente um ou outro texto, em divergência livre e fundamentada; outra coisa é adjectivar todos os que ali escreveram, culpando-os, incluindo o apresentador do livro, de serem «de extrema-direita» ou «fascistas» (aliás, um dos factos interessantes a que assistimos foi à certeza com que tantos acusaram o apresentador do livro de radicalização, ao passo que, pelo menos, dois dos autores, Manuela Eanes e Oliveira Martins, sobreviveram aos epítetos). É um caminho perigoso que se vai tomando. A democracia é conceito formal e processual, e não substantivo e programático. Se começamos a tomar como não democratas todos aqueles que, de alguma forma ou nalgum momento, discordam das verdades oficiais, das opiniões tornadas factos ou de determinada posição política mais apreciada do que outras, acabaremos mesmo todos por ser, de alguma forma, não democratas, controlados pelos alegados verdadeiros democratas, uma casta pura de tiranetes que decide o que cada um deve ou não pensar. Se há coisa que devíamos fazer, ainda por cima nesta semana em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, era dedicar mais tempo a ouvir aqueles de quem discordamos e a responder-lhes com mais substância do que com adjectivos. Suponho que o país que se diz inteligente e culto não aguente o esforço. Boa parte do jornalismo, então, era capaz de ter uma apoplexia.

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