Luxo, poder, alta joalharia e tragédia. Tudo isto veio a jogo na “noite eletrizante” que se viveu na Sotheby’s em Genebra, esta quinta-feira. Como é frequente neste circuito, desconhece-se a identidade de quem arrematou uma das peças mais badaladas das últimas semanas, mas sabe-se que se trata de uma mulher, e que pagou 4.26 milhões de francos suíços (cerca de 4.55 milhões de euros) por uma joia cujos meandros ditaram mudanças de enredo fundamentais na história da Europa (ou pelo menos ajudaram a precipitar destinos pré-anunciados).
Uma compradora que se considera apenas a fiel depositária de uma preciosidade que um dia saltará para outras mãos, e pescoço — ou simplesmente de outro cofre onde permanecerá bem guardada. “Estou excecionalmente feliz por ter arrematado este lote; mas eu não o possuo, sou apenas a guardiã até que a próxima pessoa apareça‘.”, confessou a pessoa em questão a Andres White Correal, especialista em joias da Sotheby’s, após a venda do colar. “Obviamente, existe um nicho no mercado de joias históricas com procedências fabulosas. As pessoas não estão apenas a comprar o objeto, elas estão a comprar toda a história que está ligada a ele”, descreve Correal, citado pela Reuters.
Em causa está o colar Anglesay, ou Anglesey Diamond Négligé, um dos mais raros colares de diamantes antigos que esteve em exibição no espaço da leiloeira no centro de Londres, avaliado em cerca de dois milhões, antes de ser apresentado pela primeira vez em leilão este mês de novembro. Criado nos anos anteriores à Revolução Francesa, por volta de 1770, assemelha-se a um lenço no pescoço, e pode ser usado aberto ou amarrado na parte da frente. As pedras da peça original foram posteriormente vendidas aos poucos no mercado negro, muitas delas impossíveis de rastrear. Neste caso, especialistas apontam uma correspondência que chega ao Reino Unido.
A joia atual fez parte da coleção da família do Marquês de Anglesey ao longo de um século, até ser vendida para um acervo particular na década de 1960, tendo chegado à Sotheby’s vinda agora da Ásia. Acredita-se que tenha sido usada nas coroações de George VI e de Isabel II por membros do clã, mas o vínculo mais sonante no seu trajeto estende-se a Maria Antonieta, a austríaca que se tornou mulher do rei francês Luís XVI, ambos guilhotinados em 1793, durante a Revolução.
Celebrizado como Collier de La Reine, o colar original, de onde derivam os diamantes, ajudou a precipitar a queda da rainha, ficando para sempre associado ao escândalo que agravou a imagem de vida faustosa associada aos ocupantes do trono. Um julgamento subsequente àquele que ficou conhecido como o Caso do Colar de Diamantes ilibaria Maria Antonieta de ter gasto balúrdios com a encomenda da joia, mas o dano estava feito, alimentando a queda da monarquia francesa.
O Palácio de Versalhes enquadra os episódios que remontam a 1784-85 e que envolveram o cardeal Louis de Rohan, cujo comportamento decadente merecera o desprezo da rainha, que seguindo o conselho materno o excluíra do seu círculo restrito. Após o seu retorno de Viena como embaixador, o cardeal tentou voltar a cair nas graças de Maria Antonieta. Para tal, contou com a intervenção de uma trapaceira, Jeanne de Valois-Saint-Rémy, autoproclamada condessa de la Motte (1756 1791), que organiza um encontro entre Rohan e uma figura feminina que se faz passar pela mulher do rei, tranquilizando-o sobre a sua posição na corte.
É aqui que entra em cena o exuberante colar que os à época joalheiros da Coroa, Böhmer e Bassenge, tentavam vender, sem sucesso, há algum tempo, e que exigira um investimento exorbitante. Concebido originalmente para Madame du Barry, que passou à história como amante de Luís XV, continha mais de 650 diamantes, 2.800 quilates. Mas quando o monarca morre, a faustosa encomenda fica em terra de ninguém. Quando a apresentam ao senhor que se segue, Luís XVI, ainda em 1782, a rainha não se mostrou interessada. La Motte não se acanha com esta teia intrincada. Amante do cardeal, Jeanne conta ainda com os préstimos de outra ligação amorosa, Armand Gabriel Rétaux de Villette, um falsário que terá engrendrado cartas supostamente escritas pela rainha em que esta manifestava a Rohan a vontade de possuir o colar. O cardeal disponibilizou-se assim para ser intermediário da austríaca, comprometendo-se a comprar a peça, com o pagamento a ser feito em quatro parcelas ao longo de dois anos.
Para Böhmer e Bassenge o plano parecia perfeito para despacharem por fim a peça na qual tanto haviam investido. A 1 de fevereiro de 1785 o cardeal recebe a joia e apresenta-a à condessa, que se apressa a desaparecer com os seus cúmplices. Por sua vez, os joalheiros iam aguardando, sem resultados, as tranches seguintes. Böhmer chega a escrever à rainha, que desconhecendo o assunto ignora a carta. O joalheiro insiste em nova missiva, agora dirigida a uma das aias, que relato o curioso caso a Maria Antonieta, que destapa por fim a farsa. Num dia em que está prestes a celebrar a missa na capela Real, Rohan recebe uma intimação do rei e acaba por ser preso na Galeria dos Espelhos, enquanto a corte observa os acontecimentos com espanto.
Levado ao Parlamento de Paris em maio de 1786, o cardeal acaba por ser declarado inocente. Enquanto Jeanne de La Motte e os cúmplices são apanhados, julgados e marcados com um ferro quente, com um V de voleuse (ladra). A sua história daria outra longa-metragem. Condenada a prisão perpétua em Salpêtrière, conseguiu evadir-se e seguir para Londres disfarçada de rapaz. Já no Reino Unido, em 1789, publicou o livro “Memoires Justificatifs de La Comtesse de Valois de La Motte”, ensaiando justificar os seus atos e culpar Maria Antonieta. Enquanto o cardeal passou o resto da vida no exílio, Jeanne morreu em 23 de agosto de 1791 (dois anos antes da rainha), na capital britânica, depois de cair de um quarto de hotel, enquanto fugia de credores.
A saga gerou tamanho frenesim que várias décadas depois, entre 1849 e 1850, Alexandre Dumas assinaria o romance O Colar da Rainha, uma trama vagamente inspirada no caso que inflamou as manchetes políticas e judiciais naqueles anos quentes.
Se Maria Antonieta nunca recuperaria a já débil reputação, manchada por mais um escândalo, o destino da joia é incerto, prestando-se a inúmeras especulações ao longo dos anos. Uma das hipóteses levantada é que a condessa terá vendido o essencial da peça a uma joalheiro inglês, William Gray, acreditando-se que parte dos diamantes terão sido reconvertidos numa outra criação fabulosa, o colar Sutherland Diamond Rivière, que permaneceu na posse dos Sutherland século XX fora e daria outra bela história. Outra linha de raciocínio defende que terá sido adquirida ainda ano final do século XVIII pela primeira duquesa de Sutherland, então casada com o embaixador britânico em França.
Nos anos 40, por exemplo, o famoso cronista do social Henry Channon defendia que parte dos diamantes ligados ao caso tanto brilhavam no pescoço de Clare (1903-1998), segunda mulher do quinto duque de Sutherland, como o remanescente dessas fiadas, com destaque para os tassels, estavam então na posse de Marjorie Anglesey, que morreu em 1946.
Não se sabe ao certo em que momento o Diamond Négligé foi adquirido pelos Marqueses de Anglesey, mas pelo menos em 1937 foi usado pela 6ª Marquesa de Anglesey com a Tiara Anglesey, brilhando numa série de retratos tirados por Cecil Beaton em torno da coroação do rei George VI, naquele ano. Mais tarde, em 2 de junho de 1953, seria a vez da sétima marquesa, Shirley Paget, prestigiar a coroação de Isabel II, na abadia de Westminster, usando o Anglesey Diamond Négligé que agora foi vendido, e do qual a família se desfez em 1976, as finanças em declínio.