Como reduzir num texto de jornal alguém com uma vida tão cheia? Mário Soares tinha a minha idade quando chegou a Santa Apolónia, a 28 de Abril de 1974, mas já com muito para contar. A sua vida mais pública começa nessa altura, embora as bases viessem de longe. A Clara Ferreira Alves, num belíssimo documentário que passou na RTP 3 na passada semana, Soares confidenciou que o que mais o enchia de orgulho fora o ter resistido ao Estado Novo durante 32 anos sem nunca ter desistido. O não desistir foi uma marca muito sua. Muito de quem marca uma geração. De quem deixa uma marca além do seu tempo.
Esclareço desde já que nunca votei Soares nem nunca estive do seu lado. Em pequeno, não votava, mas torci pela vitória de outros e em 1991 não votei nele. Mas isso não diminui a apreciação que faço do seu percurso e da sua personalidade. Pelo contrário, e modéstia à parte, fá-la sobressair porque as minhas divergências foram políticas e ideológicas, nunca pessoais.
E há muito para admirar na personalidade de Soares e que me obriga reconhecer o seu papel político. A coragem política, fosse emocional ou até física, de dizer o que pensava e fazer o queria sem prestar contas a quem quer que fosse. Soares estava-se nas tintas para as divergências e para as críticas que lhe faziam. Era impermeável à crítica, à dúvida dos outros nas suas capacidades. Uma característica pessoal valiosa que, nestes tempos de atrofio da expressão das vontades e do pensamento, serve de exemplo a quem queira fazer algo de positivo com a sua vida.
Há dois momentos políticos profundamente marcantes em Mário Soares. O primeiro, a sua actuação durante o PREC. Podemos dizer sem receio de exagero que a democracia vingou e o 25 de Novembro teve lugar porque Soares nunca fugiu. Fosse nos corredores do poder ou na rua, Soares esteve sempre lá. Nunca temeu dizer a palavra certa, ter a atitude que o país precisava. Numa conversa que tive com Vasco Pulido Valente, na sua casa em 2018, este contou-me que numa tarde desse ano de 1975, Soares o convidou para irem ao cinema, depois do almoço. À entrada do Londres, enquanto aguardavam para entrar na sala, as pessoas que esperavam com eles acercaram-se de Soares com incentivos para que continuasse, para que nunca desistisse. “Por favor, salve-nos” foi a frase mais repetida. Impressionado, Pulido Valente não se esqueceu deste episódio porque ia ao cinema com um homem em que o país depositava o seu futuro.
O outro momento foi o seu primeiro mandato presidencial. Compreendo perfeitamente que me digam que não, que a resistência ao Estado Novo seja mais importante. Sucede que não assisti a isso, mas à forma como Soares uniu um país político demasiado dividido há demasiado tempo. De 1986 em diante, o ‘bochechas’ passou a ser ‘fixe’ e as desavenças atenuaram-se. Uma vez mais, Soares torna-se num exemplo que a seguir atualmente.
Por fim, é de assinalar que Soares foi um homem bem-disposto que desfrutava a vida. Não tinha estados de alma. Era tão mentalmente são quanto fisicamente saudável. Consciente da sorte, tomou isso como uma dádiva cuja responsabilidade assumiu. Das entrevistas que concedeu a Maria João Avillez e de outros testemunhos que deu ao longo da vida percebe-se que o que nunca lhe faltou foi o amor dos pais. E isso é algo que também nos devia fazer reflectir: a enorme responsabilidade que temos para com os nossos filhos e netos, independentemente do tipo de família em causa. Soares não tinha medo de mostrar do que gostava nem do que não gostava. Desempoeirado, não perdia tempo com mal-entendidos nem falinhas mansas. Era directo e frontal. São características pessoais, mas que têm uma forte base na confiança que os pais puseram nele pela forma como o educaram e o amaram. Esta é, para mim, a última lição que podemos tirar de Mário Soares e que podemos usar perante os desafios políticos que temos pela frente.
P.S.1: Uma palavra sobre a descolonização para que referir que foi apressada porque feita tarde e a más horas. Uma guerra colonial inútil conduziu, em plena guerra fria com EUA e URSS a digladiarem-se pelos restos dos impérios europeus, a um processo difícil com um desfecho aquém do desejado. Soares foi responsável pela condução do processo que quis resolver rapidamente, mas estava inquinado há muito.
P.S.2: A visita de Joe Biden a Angola é uma excelente notícia para os angolanos, para Portugal e para o Ocidente. Há anos que tenho escrito sobre a importância geoestratégica de Angola na África Austral e na luta contra a influência chinesa (e russa) no continente africano, bem como no Atlântico Sul. Nesse sentido, é de salientar a paragem de Biden em Cabo-Verde. O passo seguinte será Portugal ter um papel mais activo na ajuda à resolução dos conflitos em Moçambique e na sensibilização da Índia para os investimentos nesse país e a importância do estado moçambicano na segurança do Índico.