Menos de um ano depois de ter aberto inquérito, o Ministério Público arquivou o processo que visava o paleontólogo Octávio Mateus, acusado, em 2023, por alunos e colegas, de assédio sexual e moral. Ao Observador, a Procuradoria-Geral da República explica que o despacho de arquivamento foi emitido por falta de queixa formal das alegadas vítimas às autoridades.
O professor na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa chegou a ser suspenso pelo período de 90 dias, continuando, no entanto, a receber o vencimento. Já este ano letivo, o paleontólogo voltou ao ensino da disciplina de Competências Transversais para Ciências e Tecnologia, do primeiro ano de licenciatura e, há menos de um mês, foi nomeado presidente do Conselho Científico da AGEO — Associação Geoparque Oeste, tendo sido eleito para um mandato de três anos.
Ouça aqui na íntegra o episódio desta semana de Onde Pára o Caso sobre o caso Octávio Mateus
O Observador tentou chegar ao contacto com as denunciantes que acusaram Octávio Mateus de práticas de assédio sexual. No entanto, até à publicação deste artigo, não foi possível obter mais esclarecimentos sobre os motivos que levaram a não avançar com uma queixa formal junto do Ministério Público ou da PSP.
O caso ficou conhecido pela primeira vez através de uma investigação da revista Sábado, que divulgou várias denúncias de alegadas vítimas relativamente às condutas do paleontólogo. Um dos denunciantes era o investigador holandês, Dan Wolthuis, que publicou uma mensagem no Facebook dirigida a Octávio Mateus, em que podia ler-se: “Devias ter vergonha do que fazes. Abusas do teu poder para assediares mulheres sexualmente sem consentimento. Não voltarei a trabalhar contigo e apelo a outros que saibam disto que façam o mesmo que eu.”
À denúncia de Wolthius juntou-se a de Melanie During, uma cientista holandesa que descreveu o momento em que conheceu Octávio Mateus, em 2014, numa conferência internacional em Berlim. During afirmou que o paleontólogo lhe tocou “nas pernas e na anca”, acusando-o de ser “um predador”, o que levou a cientista a recusar participar em eventos em Portugal para não ter de se cruzar com o professor.
A investigação jornalística foi partilhada por vários profissionais da comunidade científica nas redes sociais, principalmente no estrangeiro. Também numa carta recebida pela universidade foram descritos momentos em que o professor alegadamente “apalpou alunas” na zona púbica, sentou outras no colo e chegou a fazer convites a uma colega para passarem a noite num hotel. São também relatados favores académicos e compra de viagens em troca de silêncio sobre as suas investidas.
Ricardo Araújo, professor universitário noutra instituição, e que conhece Octávio Mateus há mais de 20 anos, disse ao Correio da Manhã, em 2023, que a conduta do colega era a de um “predador sexual” e que foi testemunha disso mesmo em várias ocasiões. “Ele tenta aproximar-se [das mulheres], tocar-lhes ou fazer alguma coisa de cariz sexual”, explicava Ricardo Araújo, garantindo que ele próprio assistiu a este tipo de situações.
Na sequência das denúncias, Octávio Mateus, que tinha descoberto os restos do primeiro dinossauro em território angolano, foi afastado do projeto Paleo Angola, tendo sido ainda proibido de participar em vários eventos internacionais e suspenso da função de investigador associado do Museu de História Natural de Nova Iorque, nos Estados Unidos.
No início deste ano, a Universidade Nova de Lisboa suspendeu o professor durante 90 dias e comunicou ao Ministério Público as queixas que chegaram ao portal de denúncias da instituição. De acordo com informações enviadas ao Observador no início de dezembro, “foram recebidas 29 denúncias” através desse canal, “com as seguintes características: 17 de assédio moral, 5 de assédio sexual, 1 simultaneamente de assédio moral e sexual e 6 de discriminação”.
Ainda segundo a UNL, todas as 29 denúncias recebidas “foram analisadas, sendo que 21 foram arquivadas, 3 justificaram a abertura de processo/inquérito disciplinar” — pelo menos uma delas dizia respeito a Octávio Mateus — “e as restantes [5] continuam a ser analisadas e investigadas”. O Ministério Público acabou por abrir uma investigação ao caso do paleontólogo e o processo ficou a cargo do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Almada, mas foi arquivado.
Universidade Nova de Lisboa recebeu 29 denúncias de assédio em ano e meio, cinco por assédio sexual. Nos cursos de música, não há casos
No programa Onde Pára o Caso, na Rádio Observador, a advogada Leonor Caldeira explica que a queixa das alegadas vítimas às autoridades judiciais é imprescindível para que o processo avance. “O que a lei nos diz é que os crimes de natureza sexual — exceto violência doméstica, que é um crime público — dependem de queixa da vítima no prazo de seis meses depois do conhecimento dos factos”, sublinha Leonor Caldeira, que acrescenta que fazer queixa nos canais de denúncia não chega para a justiça.
A advogada explica, no entanto, que a Universidade não tem obrigação de esperar por uma pena da justiça para penalizar o alegado agressor: “A Universidade tem poder disciplinar de agir sobre alegadas condutas impróprias, impondo consequências que podem ser a suspensão de funções, a expulsão ou ainda ser afastado de funções de docência em que esteja próximo dos alunos, se se entender que abusa da relação de poder.”
Ao Observador, a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa adianta que, “terminado o período de suspensão de três meses, e não havendo qualquer indicação contrária, o docente está obrigado a retomar as suas obrigações contratuais”. Acrescenta a instituição que está a aguardar neste momento o desfecho do processo judicial, sendo que “agirá de acordo com os termos que forem definidos”. O Observador tentou falar com o professor e paleontólogo Octávio Mateus, que recusou prestar declarações, adiantando apenas que as acusações sobre si lançadas “são falsas”, e remete todos os esclarecimentos para “sede própria”.
Ao Observador chegaram queixas de fontes ligadas à FCT que não entendem o regresso do paleontólogo às atividades de docência: “Passeia-se pela universidade como se nada fosse”, reclama uma das fontes que não quer ser identificada. Outra das pessoas que também pediu ficar em anonimato confessa que não compreende como é que, face a várias denúncias de assédio, “nada acontece”.
A advogada Leonor Caldeira explica ainda no programa Onde Pára o Caso a dificuldade de vítimas e testemunhas em dar a cara. A maior parte das vezes, “têm medo de represálias”. Por ser um dos investigadores mais influentes no meio, Octávio Mateus pode representar uma ameaça, admite a advogada. “O medo de represálias é um grande demovedor da queixa. Somos nós [as vítimas] contra o professor, somos nós contra alguém que tem poder sobre a nossa carreira, que tem contactos, etc”, o que pode pesar na hora de dar a cara e levar a vítima a desistir da justiça, acrescenta Leonor Caldeira.