A porta da casa de Eelsank Cravide é uma das várias em que foi colado o aviso da Câmara Municipal que dava um prazo de 48 horas antes de começarem as demolições daquela zona de casas e barracas em Loures. A sua porta, tal como a do lado, tem um pequeno hall antes da escada que dá para a rua, onde há uma outra porta, podre e partida. “Esta aqui eu guardo de lembrança”, diz Cravide, referindo-se às poucas coisas reconhecíveis do estado da casa como a encontrou, quando a ocupou, há quase dois anos.
Antes de se instalar ilegalmente nesta propriedade na Rua das Marinhas do Tejo, em Santa Iria de Azóia, no concelho de Loures, Cravide esteve no Porto, uma das paragens da sua estadia em Portugal onde, vindo de São Tomé e Príncipe, veio “buscar algo melhor”. Mas as suas condições rapidamente se tornaram insustentáveis. Quando recebeu o seu primeiro salário “o dinheiro não chegou até ao final do mês, no mês seguinte, já não chegou ao final da primeira quinzena”. Tinha 40 anos e decidiu mudar-se então de novo para os arredores da capital, onde arranjou um trabalho de construção civil, em Santa Iria de Azóia.
O novo trabalho obrigou à procura de um sítio onde ficar, mas o salário de Eelsank Cravide não permita corresponder à oferta do mercado de habitação. Procurou alternativas. A ocupação da propriedade na Rua das Marinhas do Tejo terá começado após a dica de uma pessoa que dormia debaixo do viaduto do IC2, que atravessa o terreno contíguo à propriedade onde se viriam a instalar vários moradores, contam. Foi há cerca de dois anos que ocuparam ilegalmente várias habitações desocupadas num edifício conhecido como “casa-mãe”, onde moram legalmente dois portugueses, uma senhora idosa e um jovem, há vários anos.
Eelsank Cravide abordou o dono da “casa-mãe” e do terreno que a rodeia, quando este foi um dia à propriedade “buscar uns figos”, diz. Pediu-lhe autorização para ocupar uma das várias casas vazias, ao que este terá respondido ao imigrante: “Não quero ninguém aqui”. Mas Cravide, em conjunto com outros são-tomenses, ignoraram o proprietário, entraram nas habitações e começaram a fazer obras para lá poderem morar.
“Não havia telhado e chovia cá dentro”, diz, mostrando vídeos e fotografias no telemóvel que demonstram o antes e o depois dos trabalhos de reconstrução. “Arrumei o lixo todo, tinha muito lixo”, conta, enquanto mostra também imagens de plástico que cobriam as várias divisões da casa de modo que se tornava impossível ver o pavimento. “Não conseguia andar”, acrescenta. Agora, numa visita aos vários espaços da casa, guia-nos orgulhoso apontando como conseguiram tapar buracos e parar as infiltrações desta residência onde vivem três pessoas. “Até temos aquecedor”, gaba-se.
Depois lembra como na altura do Natal do ano passado, os ocupantes ilegais da “casa-mãe” receberam uma primeira visita dos serviços da Câmara Municipal de Loures. Segundo Cravide, as autoridades não censuraram a ocupação da habitação e, inclusivamente, incentivaram os ocupantes ilegais a construir um sistema de canalização para garantir a higiene. “Fiquei tranquilo”, conta o são-tomense.
Depois de, na quinta-feira passada, as autoridades da Câmara de Municipal de Loures terem voltado ao local, quase um ano depois, esta terça-feira os moradores ficaram surpreendidos quando leram a nota que os incentivava a retirarem todos os seus pertences das casas, informando que, num prazo de 48 horas, começaria a demolição das mesmas. Cravide foi apanhado de surpresa. “Eu vou tirar os meus bens para onde? Tenho de ficar aqui, nem que tenha de construir uma barraca de plástico”. Pelo menos “até nos organizarmos”, acrescenta.
“O problema foram as barracas”, assume, referindo-se às várias habitações que, ao longo deste ano, foram sendo erguidas, ao redor da “casa-mãe”, pelas próprias mãos dos ocupantes. Após o início da ocupação das casas do edifício principal, há cerca de dois anos, foram-se juntando vários outros cidadãos de São Tomé e Príncipe. No levantamento feito pelos serviços da autarquia, na semana passada, foram registadas 99 pessoas a viver naquilo que o executivo camarário qualificou como um “núcleo de condições precárias e clandestinas”. Os moradores estimam que o número de pessoas a viver no “núcleo” esteja mais próximo dos 60.
As 15 barracas na propriedade da Rua das Marinheiras do Tejo, compostas com chapas de zinco e placas de aparite e pedaços de plástico, foram construídas nos últimos meses. Terá sido isso que alertou a autarquia de Loures. Após o movimento Vida Justa, vários vereadores municipais da oposição e os media se terem deslocado à propriedade, na manhã desta quinta-feira, a demolição foi adiada, não ocorrendo dentro do prazo previsto pela Câmara.
À tarde, Sónia Paixão, vice-presidente camarária e responsável pelo pelouro da Habitação, falou à imprensa, explicando que a autarquia foi alertada, na passada quinta-feira, sobre construções que estavam em curso que não cumpriam a lei. Os serviços da Câmara dirigiram-se ao local na altura e consideraram que as habitações em questão “põem em causa a saúde pública e a segurança” de quem as habita.
Sónia Paixão afirmou que assistentes sociais e equipas técnicas estiveram no local “desde a primeira hora” e identificaram os moradores. Das 99 pessoas com quem falaram, 79 “têm residências de outros concelhos ao longo do país, de norte a sul, de Viseu, de Évora, de outros concelhos aqui ao lado, como Odivelas e Lisboa”, afirmou, acrescentando que estas têm vindo recentemente para o concelho de Loures construir estas habitações. Os técnicos terão identificado as situações de “maior vulnerabilidade social” e a vice-presidente disse que a Câmara está “disponível para apoiar [os despejados], por exemplo, com a prestação de caução a que é obrigada”.
A vereadora do Partido Socialista afirmou que o executivo está a trabalhar para encontrar alternativas para esses casos, sendo que considera que “qualquer solução é melhor” que a atual. Sónia Paixão não adiantou o número de pessoas que serão apoiadas, pedindo aos moradores despejados que tenham “proatividade” e desaconselhando as pessoas a “não fazerem nada e ficarem no local paradas”.
Desde as primeiras ocupações, foi-se constituindo uma comunidade grande de imigrantes são-tomenses, com vários agregados familiares, divididos pelas habitações da “casa-mãe” recuperadas e as barracas.
Edgar Lázaro tem 65 anos e é desempregado. Afirma que a dificuldade em encontrar trabalho com a sua idade levou a que tivesse de ocupar uma das casas no velho edifício. A convivência aí também não foi condigna o suficiente: “Eram sete a oito pessoas a dormir num quarto”, lembra. Então, decidiu criar a sua própria barraca, já não na propriedade do dono da “casa-mãe”, mas no terreno adjacente em que passa a IC2. Com vários pedaços de madeira e plástico montados à volta de uma árvore criou a sua casa, mas na noite passada teve de a esvaziar para proteger os seus pertences.
Na quarta-feira, tal como vários outros moradores ilegais do núcleo da Rua das Marinhas do Tejo, Isirca Danquá carregou o recheio da sua habitação para debaixo do viaduto da estrada IC2. Vários moradores passaram a noite ao relento, preparados para que as suas casas fossem demolidas pelas nove da manhã desta quinta-feira. “Aqui há bebés, mulher grávidas, doentes”, afirmou esta mulher de 37 anos, grávida de 8 meses daquele que será o seu terceiro filho, referindo casos de pessoas que vieram diretamente do hospital para aquele espaço.
Isirca é trabalhadora das limpezas e, de momento, está de baixa médica por causa da gravidez. Na Rua das Marinhas do Tejo, vive com o marido, que também está empregado, e um dos filhos. “Eu não posso estar a dormir na rua, estando a trabalhar e a fazer descontos para o Estado”, diz Isirca, criticando as casas fechadas e sem pessoas, no concelho de Loures, nas quais a câmara não põe ninguém.
“O Presidente da Câmara de Loures é muito malvado, não tem coração. Ele é racista”, acusa Isirca, lembrando a recente polémica com as declarações de Ricardo Leão. Esta mulher de 37 anos conta que foi à Câmara nesta segunda-feira pedir um prazo máximo para os moradores saberem até quando se tinham de mudar. “Disseram para procurar casa o mais rápido possível”, afirma Isirca. “Onde é que vamos ver casas? Em que zona?”, pergunta, queixando-se, de seguida, que a habitação mais barata que encontrou em Lisboa era um T0, cuja renda era 900 euros.
“Temos consciência que construir barracas neste terreno é ilegal, quem invadiu o espaço tem consciência que invadiu propriedade privada, mas se o dono quiser retirar [as pessoas], se o governo quiser demolir as barracas, que nos dê um tempo para nos procurarmos casa”, pediu. Isirca Danquá afirma que, antes de colocarem os avisos, os contactos dos serviços camarários com os moradores nunca mencionaram quanto tempo estes teriam para sair do espaço. Interrompida constantemente pelo barulho dos carros a passar numa lomba da IC2, a estrada que serve de novo tecto, Isirca diz: “Nunca tivemos essa conversa”.
Enquanto os moradores do núcleo das Marinhas do Tejo esperavam nervosamente a chegada das autoridades para lhes demolir as barracas e despejar os ocupantes ilegais, do topo da colina que marca o terreno da propriedade chega Manuel Severino, cumprimenta calorosamente todos os presentes que encontrava no caminho até à sua plantação. “O tio Manuel está fresco”, diz com um sorriso uma jovem são-tomense, depois de um aperto de mão prolongado.
Manuel tem 78 anos e é reformado. É dele uma grande porção de terreno na mesma propriedade onde, nos últimos dois anos, passaram a viver quase mais de uma centena de pessoas. Neste espaço cultiva couves, salsa, cebolas, entre outros vegetais. Conta que chegou mesmo a criar cabras, mas tendo elas fugido para a estrada, a Nacional 2 que ladeia a propriedade, decidiu vendê-las para não entrar em despesas.
“O meu ginásio é andar com a enxada”, diz Manuel que tem plantações na propriedade há mais de duas décadas e foi testemunha privilegiada da chegada e instalação, nos últimos dois anos, de todos os imigrantes que ali vivem. “Não tenho razão de queixa”, diz em relação aos inquilinos ilegais. Conta que tudo o cultiva é para consumo próprio ou para dar a amigos e conhecidos. “Já-lhes dei tomates duas vezes”, afirma, “se eles me pedirem eu dou”. Menciona que foi combatente na guerra do Ultramar, durante quase dois anos, tendo lutado no “mato” de Moçambique. Isso faz com que simpatize e ajuda a relacionar-se com esta numerosa comunidade de africanos.
No entanto, os despojos que acabaram por não se verificar esta quinta-feira não o deverão afetar diretamente. “Estou aqui com ordem do senhorio”, sublinha o septuagenário. Tendo permissão para cultivar no terreno durante mais de duas décadas, Manuel criou, ao longo dos anos, uma relação com os proprietários. “Estiveram aqui há dias”, diz, “se precisarem de alguma coisa ligam e já têm ligado a perguntar por eles, se eles [os ocupantes ilegais] estão bem ou como estão”, admite. Afirma, à semelhança de vários moradores das habitações clandestinas, que o dono quer vender a propriedade e que isso poderá ter motivado a Câmara de Loures a agir.
Mas alguns daqueles que puderam acompanhar de perto o crescimento deste núcleo de construções ilegais mostram descontentamento com os novos vizinhos. Alguns metros antes de se chegar à parte da propriedade onde estão instaladas as barracas, tem de se passar por casas na margem da N2, onde residem várias pessoas que também têm assistido à evolução da comunidade ali instalada.
“Falo com a maioria deles. Eu digo ‘Bom dia’ e eles respondem ‘Bom dia, vizinha’”, afirma uma das moradoras, uma mulher cinquentenária que pediu para não ser nomeada. Queixa-se, por outro lado, das viaturas que atravessam o pequeno troço, à sua porta, para chegar às barracas. Particularmente os carros que passam com o volume muito alto ou camiões com material de construção que fazem o caminho até às novas construções.
Menciona também alguns problemas de higiene e episódios de falta de higiene à porta das habitações. No entanto, mostra-se solidária com cidadãos que aguardam o despejo: “Tenho pena pelas crianças”, diz. Incerta sobre se a demolição irá mesmo acontecer afirma: “Espero que eles fiquem bem, que a Câmara lhes tente arranjar uma casa”.