Plutonio refere-se ao episódio em que, tal como relata no mesmo tema, estava a fazer um concerto importante em Paris, ao mesmo tempo que um dos seus melhores amigos estava a ser detido em Portugal. “Acabo o espetáculo, tinha imensas chamadas não atendidas, e o meu amigo tinha acabado de ser preso. E era a pessoa que passava mais tempo comigo no dia a dia. É muito sobre este contraste de que falo neste álbum, é algo que marca a minha vida neste momento.”
No álbum que serviu como rampa de lançamento e que o colocou no estrelato, Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor (2019), tem uma canção intitulada Sr. Guarda. “É uma crítica ao abuso policial, algo sobre o qual sempre falei, e foi uma música que acabou por me trazer um monte de problemas com a polícia. Já os tinha, no meu passado, e com aquela música foi como se eles batessem o pé: ‘a partir de agora temos aqui um problema sempre que te encontrarmos’. Tanto que isso resultou num processo [judicial] que está em andamento, no qual fui vítima.”
Em 2021, relatava na série Acoustic Home, da HBO Max, como cerca de uma década antes tinha sido levado para a esquadra da GNR, algemado e sido vítima de uma série de agressões e humilhações. “É quase como se fosse uma guerra entre a polícia e os moradores do bairro”, apontava na altura. “Nada disto tem a ver com proteger as pessoas.”
Após a morte de Odair Moniz, alvejado por um agente da PSP na Cova da Moura (e depois dos subsequentes desacatos que se espalharam pelas periferias de Lisboa), Plutonio reagiu publicamente para apelar à resolução daquilo que diz ser um problema originado num “sistema que falha constantemente a ambas as partes”. “Portugal é uma casa onde os bairros são tratados como anexos, mas não podemos esquecer de que o anexo também faz parte da casa”, escreveu no Instagram.
Ao Observador, reafirma que esta tem de ser uma “questão central” e não “periférica”. “Gostava que os problemas se resolvessem e que as pessoas deixassem só de se revoltar quando há casos que chocam. Tem de ser um trabalho contínuo, só assim haverá melhorias significativas. Há coisas que acontecem agora que são iguais às que aconteciam há 20 anos, eu via-o no meu bairro. Mas é importante, enquanto sociedade, enquanto um Portugal de todos, olharmos para estes casos e arranjarmos uma forma de melhorarmos o país de todos. Deveríamos tentar aprender com outros países que possam já estar mais evoluídos nisto, antes que estes problemas se comecem a refletir na forma como o povo eventualmente se pode expressar; porque às vezes pode não ser da melhor maneira.”
Carta de Alforria é um disco com uma particular consciência de classe, que afirma que nem todo o sucesso do mundo o torna imune à discriminação ou à violência policial.
[o vídeo de “Como 1 Rei”:]
“Enquanto músico, acima de tudo o importante é fazer boa música. Mas, enquanto pessoa, sinto que ao mesmo tempo é importante passar certas mensagens. Cada um de nós deve preocupar-se em ser uma boa pessoa no dia a dia, e não esperar pelas pessoas que possam ter um posicionamento especial, que têm de ser os que vão solucionar tudo. Acima de tudo, é no dia a dia: se vires alguém a tratar mal outra pessoa porque está mal-vestida, porque tem um tom de pele diferente, ou porque não tinha dinheiro para alguma coisa… Tens de te chegar à frente e chamares a atenção. A longo prazo, se cada um fizer a sua parte, vai fazer a diferença. Ao mesmo tempo, devemos alertar; mas também fazer um trabalho interno. Aí é que está a verdadeira mudança e é o que tento fazer. Faço a minha música, a minha música não é propriamente sobre política, não é uma área que eu tenha estudado para ser um profissional, mas enquanto cidadão tenho mensagens que se podem relacionar com as outras pessoas. E faço o meu papel todos os dias como pessoa.”
Quando olhamos hoje para o panorama nacional, não faltam exemplos de músicos ou desportistas, sobretudo, que cresceram em bairros sociais ou em contextos de pobreza e que conseguiram ultrapassar as adversidades e as desvantagens para se tornarem casos de sucesso.
“É importante que exista essa representatividade para as novas gerações. Na minha altura havia mais no futebol, mas, lá está, nem todos têm jeito para o futebol. Eu não tinha, encontrei uma outra forma. Mas não tem que ser sempre com base no talento, pode ser com base na dedicação e na disciplina. Pode ser num bom trabalho, enquanto professor, enquanto polícia, enquanto político… Importante é motivar as pessoas e sinto, com o feedback que vou tendo, que certas músicas minhas têm sido banda sonora na vida de algumas pessoas, nesse sentido positivo.”
Plutonio lembra Bob Marley, o seu “artista favorito”, e como a lenda do reggae foi fundamental durante a sua adolescência. “Quando ouvia as músicas dele, parecia que estava num mundo à parte. E acho que isso é o mais importante que podemos passar aos próximos.”
Esta liberdade, conceito ambíguo que percorre o disco, refletiu-se de forma positiva durante o processo de construção de Carta de Alforria. Plutonio explica que o “à vontade” que ganhou em estúdio nos últimos anos — nos quais também lançou o disco Ordem & Progresso, que o juntou a uma série de artistas brasileiros; e o EP Anti$$ocial, com o português Lon3r Johny — fez com que estivesse num estado de espírito muito mais “livre” para criar.
“Venho de um género que, no meu início, era muito quadrado e fechado. Se uma pessoa vinha com melodias, auto-tune ou temas de amor, era complicado. E é importante passar aos outros artistas e não só, que vêm de onde eu venho, que é na boa para um rapper de um bairro fazer uma canção de amor. Ou fazer um som mais melódico ou com uma mensagem mais motivacional. O estatuto musical também me deu essa liberdade, para me sentir bem com isso”, explica.
De Sam The Kid a Charlie Beats, passando por Progvid ou DJ Dadda, Migz ou Ariel, Plutonio quis trabalhar com uma série de compositores e produtores diferentes. Desta vez, explica, o processo de criação foi mais orgânico e instintivo.
“Nunca fui para o estúdio com coisas já feitas. Não escrevi uma única letra deste álbum. O microfone estava ligado, eu dizia: ‘mete aí um instrumental. Não sei bem o que quero, mete o que tens. Quando ouvir uma cena de que goste, paramos e começamos’. Musicalmente, fui parar a lugares que não estavam planeados. Antes, se calhar achava que precisava de um beat assim ou assado, com um piano ou uma guitarra, mais trap ou mais aquilo. Foi um álbum mais livre e trouxe-me resultados de que não estava à espera. Foi tudo feito de forma natural.”