Foi, de longe, o momento mais tenso de toda a sessão que durou aproximadamente três horas. Mas Maria Luís Albuquerque estava preparada para os argumentos que sabia que iriam ser trazidos pelos eurodeputados portugueses ligados ao The Left (Catarina Martins e, também, João Oliveira, que não imprimiu a mesma agressividade retórica que a deputada bloquista na sua inquirição).
- “Qualquer pessoa que saiba como o banco funciona percebe que as decisões sobre vendas de carteiras de créditos são decisões puramente da gestão executiva que não passam sequer pelos conselhos de administração não executivos e, muito menos, pelos titulares das pastas das Finanças. Não é assim que as coisas funcionam…”;
- “Relativamente à Refer, desconheço a fonte de informação da senhora deputada, mas o resultado dos contratos de swaps que eu contratei na Refer foi um benefício superior a 40 milhões de euros. Os contratos ruinosos a que a senhora deputada se refere foram contratados noutras empresas, antes do tempo em que eu sequer assumi funções governativas, e empresas essas onde nunca trabalhei”;
- “Sobre as privatizações, já tivemos amplas ocasiões de discutir esta matéria, incluindo nas seis comissões de inquérito em que eu participei no Parlamento português devido às medidas tomadas durante o período de ajustamento. Mas, na verdade, todas estas operações foram consideradas procedimentalmente válidas pelas entidades competentes, e a própria ANA, como foi visível numa audição recente no Parlamento português, teve uma primeira versão muito positiva do Tribunal de Contas que depois, por razões que eu ainda não compreendi completamente, foi substituída por uma outra versão mais negativa”.
Neste último ponto, Maria Luís Albuquerque referia-se à entrega pelo Tribunal de Contas ao Governo, em 2015, de um relatório preliminar relacionado com a privatização da ANA. Essa primeira versão foi entregue ao Governo para que pudesse haver contraditório dos visados. Mas vários anos, depois, já com José Tavares como presidente do Tribunal de Contas (nomeado pelo PS), o relatório final foi publicado e foi muito mais crítico para o executivo que Maria Luís Albuquerque integrou.
Privatização da ANA teve “inconsistências graves” e não salvaguardou o interesse público, diz Tribunal de Contas
Mais recentemente, José Tavares, que abandonou há poucas semanas o cargo, indicou na Assembleia da República que essa primeira informação (entregue em 2015) sobre a privatização da ANA Aeroportos não era um relatório de auditoria da instituição, pelo que não vinculava nessa fase o tribunal – ou seja, não poderia ser vista como uma “primeira versão” do relatório. Porém, não terá havido mais qualquer convite a contraditório quando se obtiveram as conclusões definitivas, mais desfavoráveis para o governo de então.
O despique entre Catarina Martins e Maria Luís Albuquerque, na íntegra
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Catarina Martins: Senhora Comissária indigitada, sei que conhece bem o setor financeiro e em Portugal conhecemos bem o resultado dessa proximidade. É um caso exemplar de portas giratórias ou da raposa a tomar conta do galinheiro. Neste caso, as galinhas são o fundo de pensões que podem mesmo acabar comidos. Não é coisa pouca. Enquanto diretora da Refer, custou milhões à empresa pública em contratos swap. Fez do nosso país cobaia da Europa na resolução do BES, que disse que não custaria um cêntimo aos contribuintes portugueses. Custou 8 mil milhões. Ofereceu o BPN e pôs o país a pagar o buraco. Ofereceu a ANA, por meio século, no negócio arrasado pelo Tribunal de Contas português e a investigação na Justiça. Presidiu à venda de ativos do Banif, quando era um banco público, à Arrow, e depois foi trabalhar para a Arrow, um cargo que acumulou com as funções de deputada. Agora, estava a trabalhar para a Morgan Stanley e quer vir para a Comissão trabalhar em dossiês em que a Morgan Stanley é interessada. Pergunta: há limite para o conflito de interesses? E já se sabe para que banco vai trabalhar a seguir?
Maria Luís Albuquerque: Senhora Deputada Catarina Martins, umas breves notas sobre a questão que disse, eu já tive oportunidade de responder. É verdade, fui trabalhar para a Arrow. Deixe-me dizer, Senhora Deputada, que qualquer pessoa que saiba como o banco funciona percebe que as decisões sobre vendas de carteiras de créditos são decisões puramente da gestão executiva que não passam sequer pelos conselhos de administração não executivos e, muito menos, pelos titulares das pastas das Finanças. Não é assim que as coisas funcionam. Dizer também que, relativamente à minha passagem pela Refer e aos contratos de swaps, eu desconheço a fonte de informação da Senhora Deputada, mas o resultado dos contratos de swaps que eu contratei na Refer foi um benefício superior a 40 milhões de euros para a empresa. Os contratos ruinosos a que a Senhora Deputada se refere foram contratados noutras empresas, antes
do tempo em que eu sequer assumi funções governativas, e empresas essas onde nunca trabalhei. Relativamente às privatizações, já tivemos amplas ocasiões de discutir esta matéria, incluindo nas seis comissões de inquérito em que eu participei no Parlamento português devido às medidas tomadas durante o período de ajustamento, mas, na verdade, todas estas operações foram consideradas procedimentalmente válidas pelas entidades competentes, e a própria ANA, como foi visível numa audição recente no Parlamento português, teve uma primeira versão muito positiva do Tribunal de Contas que depois, por razões que eu ainda não compreendi completamente, foi substituída por uma outra versão mais negativa. Quanto à oportunidade que agora tenho de, novamente, servir o interesse público, é algo pelo qual eu estou grata, é algo a que, conforme já disse, me comprometo, como sempre, a servir lealmente os interesses públicos. Aquilo que vou fazer depois disto, Senhora Deputada, não sei. Se me confirmarem, eu estou muito focada nos próximos cinco anos, onde espero verdadeiramente contribuir para o bem da Europa.
Catarina Martins: Senhora Comissária indigitada, tivemos também uma comissão de inquérito do swap. Não voltarei às discussões que já tivemos antes, sei que falou da sua política enquanto governante, sabe que temos oposições. Continuo a dizer que o mito da saída limpa é só um mito. Foi o BCE que nos permitiu regressar aos mercados e a sua política só trouxe desemprego, pobreza e mais dívida pública. Mas eu volto às questões de conflitos de interesses porque, repare, não foi capaz de proteger sequer os depositantes de um banco regional e, agora, propõe-se brincar com os fundos de pensões em toda a União Europeia. É a lobista do setor financeiro na pasta e todos os grupos que a aceitarem são cúmplices disso mesmo. Candidata-se para criar um mercado de capitais que joga com fundos de pensões e com o dinheiro dos contribuintes. Que garantias lhes dá? Até ver, a sua longa experiência é um longo cadastro.
Maria Luís Albuquerque: Senhora Deputada, não entrando na questão que, de facto, nos divide sobre a saída limpa e o que isso representou, já discutimos amplamente isso no passado, eu gostaria de dizer que os depositantes foram protegidos nas situações bancárias em Portugal. Nós encontrámos, em 2011, um setor financeiro em situação muitíssimo dramática, aliás, é também por isso que eu sou tão defensora da União Bancária, porque a União Bancária nos permite criar instrumentos que impedem o contágio entre soberano e setor bancário. É muito importante que nós quebremos esse círculo vicioso que tanto prejudicou o nosso país no passado, e eu discordo também, naturalmente, da visão da Senhora Deputada que no mercado de capitais se fazem jogos com o dinheiro. No mercado de capitais, criam-se oportunidades para que os vários participantes possam, de facto, obter as melhores oportunidades de investimento e para que, também, os investidores particulares possam obter a melhor rentabilidade e a melhor segurança para o seu futuro.
Momentos depois, João Oliveira, deputado comunista que também pertence ao The Left, acusou Maria Luís Albuquerque de ser alguém que irá defender a “roleta da especulação” dos mercados de capitais, o que, na sua visão, coloca em perigo as poupanças e as pensões dos cidadãos.
Sobre a União Bancária, defendida acerrimamente por Maria Luís Albuquerque logo desde a intervenção inicial, João Oliveira diz que esta só irá promover “a concentração do setor bancário e a criação de ainda maiores grupos económicos”, políticas que “multiplicam os lucros [da banca] e concentram o poder na mãos de poucos banqueiros”.
Mas, já depois da audição, as palavras de Catarina Martins mereceram muito mais críticas por parte dos eurodeputados mais próximos de Maria Luís Albuquerque do que as palavras de João Oliveira. Lídia Pereira, do PSD, e João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, reprovaram as declarações de Catarina Martins na audição, considerando-as “deselegantes”.
“Acho que foi uma deselegância e faz parte do radicalismo a que estamos, infelizmente, habituados com os representantes do Bloco de Esquerda e em particular de Catarina Martins”, afirmou Lídia Pereira, questionada pelo Observador. A eurodeputada do PPE sublinhou a “tranquilidade” com que Maria Luís Albuquerque respondeu a essas questões.
Já João Cotrim Figueiredo disse-se “chocado” com a interpelação de Catarina Martins, com o “uso da demagogia e da mentira para o combate político”, e também o recurso pelo BE “ao populismo que tanto dizem querer combater”.