Olhando para trás, em que é que o contrato com o Lone Star podia ter sido melhor, no sentido de acautelar os interesses do Estado? Foi um contrato feito um pouco sob pressão…
Eu pensei nisso ao longo de todos estes anos. Não participei no contrato, não conheço os antecedentes imediatos do contrato, mas fui vendo os constrangimentos que existiam na altura. E, neste momento, estou convencido de que este foi o melhor acordo possível. Nem sempre estive convencido disso. Neste momento estou. Foi o melhor acordo possível para o Estado Português e para o Fundo de Resolução. Porque, realmente, o facto de haver um duplo limite para o pagamento das calls permitiu poupar dinheiro e permitiu racionalizar todo este processo. Estou a falar do duplo limite do montante dos prejuízos líquidos do CCA e, por outro lado, o outro limite que era o Fundo de Resolução só entregar o necessário para cumprir o rácio mínimo de capital (e, a partir de 2020, para cumprir o rácio de 12%, que era o que tinha sido contratualmente estipulado).
Mas diz que nem sempre pensou assim, ou seja, nem sempre pensou que o contrato salvaguardava bem o interesse público…
Ao longo dos anos fui conhecendo melhor as circunstâncias que estiveram na base do acordo. Aquilo que alguém pode assacar a este acordo, e que levou efetivamente a calls muito elevadas em 2018 e 2019, foi a tal questão que eu referi da constituição de imparidades. Não fazia sentido haver a possibilidade do Fundo de Resolução ou da Comissão de Acompanhamento, ou fosse quem fosse, vetar as imparidades. As imparidades têm aspetos objetivos, têm razões técnicas para serem constituídas.
E, mais uma vez, são validadas pelos auditores.
Exatamente, são validadas pelos auditores. Portanto, aquilo que podia ter levado a uma eventual redução das calls de 2018 a 2019 seria uma espécie de um veto à constituição de imparidades, na realidade era inexequível, não fazia sentido, porque essas imparidades obedecem a determinados requisitos técnicos, que estão aliás em vários regulamentos da União Europeia, do BCE…
Nunca viu uma utilização abusiva…
Não, nunca vi uma utilização abusiva. Vi, volto a dizer, nesses primeiros dois anos, que havia uma posição conservadora do banco e, portanto, na constituição de imparidades. Mas tem a ver, como digo, com aquele ponto de partida péssimo, um banco que tinha um terço da carteira em crédito em incumprimento.
Quem é José Bracinha Vieira?
↓ Mostrar
↑ Esconder
↓ Mostrar
↑ Esconder
Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, também aí obteve o grau de Mestre em Ciências Jurídico – Económicas, em 1986. Foi professor universitário na Faculdade de Direito de Lisboa entre 1977 e 1992, na Universidade Lusíada entre 1987 e 1992 e na Universidade Autónoma de Lisboa, entre 1996 e 2002.
Entrou no Banco de Portugal em 1979, onde exerceu, sucessivamente, funções de assessor, consultor e diretor adjunto no Departamento Jurídico, tendo posteriormente sido nomeado director do Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória (2013-2016) e Consultor da Administração.
Foi, ainda, presidente dos conselhos de administração da Finangeste – Sociedade de Gestão Financeira e Desenvolvimento, SA, entre 1982 e 1992, da Sociedade Portuguesa de Empreendimentos, SA, entre 1998 e 2002 e da Parque Expo, SA, entre 2002 e 2005.
Teve uma passagem pelo poder político, pelo PSD, exercendo as funções de Secretário de Estado dos Recursos Educativos entre 1992 e 1994 e de Presidente do Instituto Nacional de Habitação, em 1995-1996. Foi, também, presidente do conselho fiscal do Centro Europeu Jacques Delors, entre 1995 e 1998, presidente da Assembleia Geral do Oceanário de Lisboa, entre 2005 e 2014 e vereador não executivo da Câmara Municipal de Palmela, entre 2001 e 2005.
Em fevereiro de 2017, tornou-se presidente do conselho de administração do Banif S.A (entidade que restou da resolução de finais de 2015). Na comissão de acompanhamento do Novo Banco, começou por ser um dos vogais, subindo a presidente depois da saída de José Rodrigues Jesus.
O mecanismo de capital contingente (CCA) tinha um plafond máximo de 3,9 mil milhões. Esse plafond foi, sobretudo, consumido nesses anos 2018 e 2019, como disse há pouco. Chegou-se ao fim tendo sido consumidos 3,4 mil milhões. Em 2019, admitia que se chegasse aos 3 mil milhões. O montante final ficou 400 milhões acima disso. Porquê?
Em 2019 eu senti que se podia chegar ao limite máximo, isso preocupou-me muito e também preocupou o Fundo de Resolução. Daí o Fundo de Resolução ter-se recusado a pagar uma parte da call de 2019. Foi aí que o Novo Banho deu início a um processo arbitral. Houve uma altura em que eu temi – sendo certo que isto é uma análise subjetiva – que pudesse haver lugar a uma situação dessas [o esgotar do plafond máximo]. A Comissão Europeia, no âmbito da ajuda de Estado, estudou vários cenários possíveis para a utilização deste mecanismo de capital contingente. Havia um cenário minimalista, havia um cenário intermédio e havia um cenário maximalista. O cenário maximalista era que seria necessário utilizar um pouco mais de 3 mil milhões, o que não está longe da realidade, dos 3,4 mil milhões que foram efetivamente utilizados por parte do Novo Banco. Mas depois houve um momento de viragem, em 2021, que é o momento em que o banco começa a ter uma situação de equilíbrio. A partir de 2022 o banco começa a ter lucros e tem lucros muito expressivos em 2023 – e vai ter novamente em 2024.
Segundo o comunicado emitido pelo Fundo da Resolução, há poucos dias, foram impedidas 13% das propostas de vendas de ativos tóxicos do Novo Banco, tendo o Fundo pronunciado-se sobre 405 operações. 13% é muito ou pouco?
13%, a meu ver, é o adequado. Mas queria salientar que esse valor de 13% não diz tudo sobre a forma como o Fundo de Resolução tratou as autorizações de operações no Novo Banco. Porque em 42% das operações o Fundo de Resolução deu uma autorização sujeita a condições extremamente exigentes e rigorosas. Muitas vezes isso levou até a que não fosse possível fechar a transação. Passou-se a ideia de que o Fundo de Resolução foi, digamos, minimalista no que respeita à rejeição de operações. Mas não foi – foi muito, muito rigoroso, porque, como digo, em 42% dos casos aceitou, não se opôs à operação, mas sujeitou-a um conjunto de condições muito difíceis de satisfazer.
Mas as condições foram satisfeitas? Ou muitas dessas operações fracassaram?
Na maioria dos casos foram satisfeitas. Em muitos casos não foi possível fazer o devedor aceitar as condições, até porque em alguns casos ele não tinha capacidade de aceitar essas condições.
Isso significa que se preservou o valor ou perdeu-se o valor?
Isto não significa que se perdeu o valor. O valor está ainda lá, de alguma forma. Enfim, um ativo que ao longo de sete anos não é objeto de uma resolução é evidente que perdeu valor. O tempo faz perder valor a qualquer ativo – a não ser que seja um imóvel, porque um imóvel pode ganhar valor. Pode ser um imóvel que, por exemplo, não tenha capacidade construtiva e que, entretanto, obtenha um alvará de loteamento. Aí pode valorizar-se. Fora esse caso, num caso normal de uma empresa, uma empresa industrial, uma empresa de serviços, que é devedora, normalmente o passar do tempo sem o problema ser resolvido leva à degradação do valor desse ativo. O Fundo de Resolução, em certos casos, mais recentemente sobretudo, teve em conta também – e eu compreendo que isso tivesse de ser feito – questões de natureza reputacional. E, portanto, em relação a certos devedores essas questões reputacionais podem ter levado à rejeição de certas operações….
Pode dar-nos um exemplo? Sei que não pode falar de casos concretos por questões de sigilo, mas o que quer dizer com isso?
Suponha uma operação que poderia até ser razoável no plano económico mas que, efetivamente, podia envolver, pela natureza do devedor, um problema reputacional.
Porque a perda reconhecida, no fundo, seria um perdão a essa pessoa ou empresa, é isso?
Seria, por exemplo, um perdão a uma pessoa que se admite que possa ter outros patrimónios. Outros patrimónios escondidos em outras jurisdições, por exemplo, offshore. Ou que tenha um passado terrível de não-cooperação com o banco. Em casos desse género, há, de facto, um problema reputacional se, por exemplo, se decide fazer um haircut – fazer um perdão de 40% a 50%, por exemplo. Algo que, mesmo assim, no plano económico, tendo em conta os ativos da empresa, podia ser uma solução razoável. Mas, quando se tem em conta o comportamento anterior do devedor, quando se tem em conta a possibilidade de [ele] ter outros bens ocultos em outras jurisdições, é compreensível que a operação seja rejeitada com base naquilo que eu chamo de um problema reputacional.
“Ainda há imparidades a fazer no Novo Banco. Vai ser preciso coragem para casos que envolvem nomes de estimação”
Em 2019 houve uma audição parlamentar que foi muito polémica. Bracinha Vieira era vogal da Comissão de Acompanhamento, o presidente era José Rodrigues Jesus, que na altura [Rodrigues Jesus] disse que havia certos “nomes de estimação” da sociedade portuguesa que eram devedores do banco, que iria ser necessário “coragem” para lidar com eles… Houve essa coragem, agora que o processo terminou?
Houve, houve coragem. E os serviços do banco e o conselho de administração executivo do banco tiveram um extremo cuidado e rigor na forma como lidaram com essas situações. Há um departamento do Novo Banco que tem a ver com a recuperação de créditos, que teve um papel relevantíssimo –eu insisto, relevantíssimo – na forma como esses créditos foram tratados. E foi isso que permitiu, apesar de tudo, a tal recuperação cumulativa de 5,6 mil milhões de euros… Estamos a falar de ativos que tinham uma natureza extraordinariamente degradada. Era difícil ver uma degradação tão grande. E se me perguntar porque é que eram tão degradados, eu diria o seguinte: os critérios de concessão de crédito no BES, a meu ver, careciam de rigor no plano técnico. Por exemplo, houve muitos devedores do banco que ficaram no CCA e que tinham dado como garantia penhor de ações do BCP. Como se recorda, o BCP, depois daquela fase – 2007 e 2008 –, teve uma desvalorização brutal das ações. E o Novo Banco (e o mesmo aconteceu na Caixa Geral de Depósitos) concedeu muito crédito com base em penhor de ações do BCP, portanto perdeu grande parte do valor da garantia. No caso de Novo Banco, só isso, levou a centenas de milhões de prejuízos. A partir de 2018, o Novo Banco começou a fazer vendas de imóveis e vendas de créditos agrupadas…
Pacotes…
Exatamente, o que teve todo o sentido. E aquela venda que permitiu maior redução dos créditos malparados, obviamente acompanhada por perdas, foi a chamada carteira Nata 2, que tinha a ver com os piores devedores do universo CCA e, portanto, não podia deixar de causar perdas. Porém, uma grande parte da carteira já tinha sido objeto de imparidades, portanto o valor líquido da carteira Nata 2 já era baixo quando foi posta à venda – e, por isso, o prejuízo da operação foi relativamente reduzido.
“Atentas” à crise. Quem são as empresas que ganham milhões com os “calotes” da banca?
Um risco que se admitiu nessa audição parlamentar de 2019 é que pudesse haver compradores de ativos do Novo Banco que podiam ser “testas de ferro” dos devedores de alguns desses créditos. Ou seja, os devedores podiam recomprar esses ativos a um valor mais baixo do que a dívida que tinham e, portanto, impunham uma perda ao Novo Banco e, em consequência, para o Estado. Acha que isso pode ter acontecido?
Não é “pode ter acontecido”. A minha resposta é que aconteceu, nalguns casos, a tentativa de, por exemplo, na venda de créditos ir-se tentar colocar o ativo no mercado e, entre os vários interessados, surgirem, por vezes, interessados que tinham relações específicas diretas com o devedor. Queriam comprar o crédito por um valor abaixo do valor nominal para, posteriormente, o vender por esse valor ao devedor, que era parte relacionada. Nesses casos, o próprio Novo Banco, pela sua compliance, detetou a situação. Nalguns casos, até havia operações que economicamente seriam menos más, eventualmente, mas é evidente que o Fundo de Resolução se opôs por razões reputacionais – mas são razões perfeitamente compreensíveis. Quer dizer, no fundo, é estar a dar um bónus ao devedor indiretamente.
Foi partilhada essa informação com o Ministério Público, quando se percebeu que aquelas pessoas estavam a tentar fazer isso, já que foram só tentativas…?
O que eu me lembro, neste momento, é que esses acontecimentos surgiram fundamentalmente em vendas de créditos no mercado. Portanto, em situações em que houve várias ofertas, não houve só uma. O que se detetou foi nos casos em que a entidade era parte relacionada com o devedor deu o melhor preço – aí é que o problema se colocou. E, em todos esses casos, a operação não foi para a frente.
Deu o melhor preço mas ainda assim esse melhor preço era inferior àquilo que devia…
Era inferior ao valor nominal. Um crédito pode valer 100 e, de facto, o valor que o suporta, o valor real económico do crédito, ser de 50… Mas se esses 50 forem oferecidos por uma parte relacionada é uma boa prática não aceitar a operação.
Foram mesmo contratados detetives para tentar garantir que os ativos não eram revendidos aos seus donos?
Não estou certo disso. Como sabe há empresas especializadas na busca de patrimónios, quer em Portugal, quer fora de Portugal. Houve casos em que essas agências, essas entidades especializadas em busca de baixas, foram utilizadas…
Pelo banco…
Pelo banco. Tanto quanto eu sei, foi apenas isso que terá acontecido.
Fundo que comprou Novo Banco prepara venda (em bolsa) pelo quádruplo. Antes, Estado pode receber dividendo de centenas de milhões
A fase seguinte pode ser a venda do banco – ou pelo menos parte do capital. Na sua opinião, o que é que seria melhor para o sistema financeiro português? Uma venda a um banco que não tenha presença em Portugal (ou tenha uma presença pequena), ou uma absorção por parte de um dos outros grandes bancos ao operar no país? Ou apenas a venda de parte do capital em bolsa e continuar independente…?
Neste momento, o Novo Banco tem uma quota de mercado [global] de cerca de 10%, sendo que esta quota é maior numa área onde tem tido uma ação importantíssima que é no crédito as pequenas e médias empresas – aí está bastante acima deste valor. Portanto, no mercado português é um banco de dimensão média, média grande. E eu receio que a absorção por um grande banco português possa levar a algum desequilíbrio em termos de concorrência no mercado bancário [naquele segmento]. Tinha algumas vantagens, também, porque hoje em dia os bancos têm de ter dimensão – teria alguma vantagem termos um banco, como os franceses costumam dizer, que fosse um “campeão nacional”, que pudesse bater-se de igual para igual com qualquer banco europeu. Mas no plano da concorrência é óbvio que um banco que dominasse 40% da quota de mercado poderia colocar algum problema de concorrência, teria uma posição dominante no mercado. Claro que podemos ver isto de outra maneira: o inconveniente que estou a referir pode ser ultrapassado se virmos o mercado como sendo um mercado europeu. E, de facto, o mercado bancário deve ser o mercado europeu. Se virmos desta maneira, a existência de um grande banco português será importante para Portugal.
E a venda em bolsa, que parece ser o cenário que está a ser preparado?
Colocando o banco no mercado, provavelmente, haverá um conjunto de operadores internacionais especializados, de fundos de investimento, de fundos de pensões, de fundos de private equity, que irão comprar partes do banco. E, colocando no mercado o banco, qualquer cidadão pode comprar ações do banco. O capital pode ser disperso [mas é positivo que se mantenha] um acionista de referência. Um acionista de referência num banco é absolutamente essencial, porque pode dar uma estratégia clara ao banco. Todavia, pode-se ser um acionista de referência com apenas 25% ou 30% do capital, se ele estiver muito diluído [por vários outros investidores]. Eu saio do Novo Banco com um certo sentimento, realmente, de missão cumprida, porque vejo que o banco conseguiu fazer o turnaround. Conseguiu, efetivamente, saindo de uma posição terrivelmente crítica, em que estava à beira de ser liquidado se não fosse vendido, como estava em 2017, para uma situação em que é hoje um banco supercapitalizado, um banco que tem uma ótima gestão e que tem uma coisa curiosa, que eu acho que valoriza o banco: há uma confluência de uma cultura anglo-saxónica com uma cultura portuguesa. Eu acho que isso é um aspeto que valoriza o banco, em termos de capacidade, de gestão e, também, de certos segmentos de mercado. Portanto, saio satisfeito, sei que este banco é, hoje, um banco forte e que vai ter um destino seguramente muito positivo.